Poemário

Desumano

10 Julho, 2017

 

Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain

O que eu preciso –

Desumano instinto

Desumano faminto de desigualdade –

é identidade.

 

O que eu preciso é de deformidade.

 

Prega assim o Evangelho –

velho só de culpa –

Novo, e que resulta

dos receios de Solidão:

“Não há perdão

para a revolta”.

Ah!

Queira um homem ser cadáver

Caído com o estertor da altivez

Se viver é marchar na pequenez

da multidão interactiva

Que tudo vive, exceto a vida.

 

Antes cegar do que seguir

rebanhos que entopem as ruas

Que pastam com olhos armados de puas

entre eles e a real existência das coisas.

 

O que eu preciso

é quem desligue a Inconsciência –

Máquina de frenética indiferença –

e se junte ao descanso

(Irreverente)

de ser gente.

 

O que eu preciso

é tempo morto

tolerância ao vazio e ao desgosto

De notar o mundo em frente a nós

Wi-fi nos livre da pena atroz

de tolerar a Solidão

Silêncio onde nasce a sugestão

de uma possível identidade.

 

Antes se pague ao barqueiro em vontade

Se vista a sunga apertada

E em natação sincronizada

Se atravesse o rio do abandono

Vala de multidões sem nome.

 

Antes se ocupe de ruído o Instante

Se entulhe o olhar e o Silêncio

Não seja quieto qualquer momento –

Mas, intermitentemente

Há que abrandar a vacuidade

E para ofender a posteridade

(repórter ávido do encenado)

Partilho a glória do ignorado

Com quem o não ignorou comigo –

E a meu lado, o foragido,

Pois que aguarde!

Entre laços e gostos,

Há uma clara prioridade.

 

 

Desumano que buscas o mundo:

já não há mais mundo!

Há espelhos e filtros e ânsia

E gente ensonada que dança, dança

de costas voltadas à vida,

De fronte voltada para a Hidra

A que engoliu o mundo

e o que fica

é o cadáver digerido em sigla

e a lápide mil vezes escrita

com smileyzinhos e cardinais.

 

(Ah instintos fatais

de quem foca e dispara a arma

a cada surpresa, a cada ameaça

de nos inflingirem a contemplação.

De nos impedirem a consagração

Do admirável acto de existir.)

 

Mas se é para sucumbir,

Pois dispare-se!

Dispare-se a tudo

Dispare-se rápido

Sem flash, antes que o sol adormeça

Dispare-se à praia e à sobremesa

Dispare-se à graciosa torção da cabeça

Preventivamente guilhotinada

mas enquadrada com método e graça.

 

Dispare-se ao sushi, à esplanada

à fotogenia encenada do gato

deitado à janela kitsch da casa

 

Talvez assim, irmão Desumano

quanto o mundo inteiro for consumido

Possamos lembrar o que estava escondido

do outro lado do ecrãn.

E aí, vilão desumano,

Poderás cantar comigo

Pelos campos de presos à irrealidade:

 

O que eu preciso é

Desigualdade,

O que eu preciso,

é de identidade!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *