Capítulo Primeiro
Ele vivia numa aldeia. Ainda se dizia assim – e mesmo depois, já homem, continuou sempre a dizê-lo. Freguesia era termo de uma grotesca secura administrativa, não tinha o encanto literário – ou o tamanho interior – de aldeia. Claro que, pequeno e provinciano, não sabia ainda que era esse o móbil para a escolha do termo – mas, ainda assim, sabia-lhe a verdade e a recato. Mesmo nas guerrilhas pelas bolas de plástico do PS nas eleições para a junta de freguesia – continuava a dizer que vivia numa aldeia – uma que ficava na periferia da cidade, naquela zona de Minho que se pode chamar mesmo de Minho. Pois, sem mais delongas, vivia numa aldeia, e bastava dizê-lo, até à sua morte, para encher o céu de grandezas opressivas, os montes de frescura mitológica, e as sestas da tarde de perdas irreparáveis, no mundo fora delas.
Sempre que o cigarro à janela pedia nostalgia, notava com curiosidade que as tardes pareciam ter sido sempre final da tarde. Talvez fosse por cromatismos saudosistas, talvez por serem sempre mais habitadas de enredo naquela hora depois dos macaquinhos na televisão amarela – daqueles cubos que ainda tinham um ralo por onde a luz se ia esvaíndo, no centro da tela, quando se desligavam. E esse final da tarde específico tinha uma cor púrpura clara, como as margaridas do jardim em frente à casa da ama – cortava o caule ao meio só para ver a seiva branca a sangrar com tanta beleza – e raramente ficava escuro antes da mãe o ir buscar. “Ó mor, olha o teu Bitinho!” lá vinha a ama com a almofada coçada, onde dormia o menino de chapéu de palha, única divindade do sono que conhecia.
Pois nesta imensidão de vida sem cronómetros, a maior parte dos mistérios ficava em casa da Tiana. A ama pródiga da aldeia cuidou dele e do irmão durante os anos exactos para ser amada, enquanto criava a primeira neta. Era uma mulher pequenina, de pele morena e cabelo curto como as divas italianas que não conhecia. Tinha no olhar um elemento líquido e terno que dissolvia a maior parte dos medos, mesmo quando corria de chinelo na mão depois de deixarem o gato levar o bife do cachaço que os tinha deixado a vigiar.
“Então Ti Begina, vem carregada, carano!”
“Oh comadre, venho é com um afrontamento, é como uma labareda por aqui acima!”
A luz púrpura tingia o verde gordo das couves que dilatavam um saco coçado, às costas curvadas de Virgínia. E numa voz subitamente murmurada, de cara mais próxima, avançou
“E os dinheiros das partilhas, sempre se resolveu?”.
O tema era de notório embaraço, mas Tiana já antes havia desatado aquele corpete da vergonha causada por uma disputa de irmãos, vizinhos de todos – e de peito aliviado, a comadre podia soltar o fôlego, deixar-se minguar.
“Nada.”
As vacas estavam a ser recolhidas no campo em frente, enquanto o gato exercitava preguiçosamente a sua natureza, mirando com nariz e olhos os bife em cima da bancada da cozinha.
“É a vida, logo se vê… mas olhe, trouxe-lhe uma trinchudas, estão gordas como o Ti Tone gosta”,
“Para quê, para quê!”
gritava a outra teatralmente, afastando a cabeça, de braços erguidos, enquanto os olhos seguiam a carne crepitante das couves a descer até aos seus pés.
“Bá, tome lá que deu muita hortaliça o campo, e a gente não as come todas”
“Mas isto é quase meia arroba mulher, era o que mais faltava!”
o corpo pequeno dobrou-se todo em diligência enquanto as mãos iam aos bolsos do avental. Estava lançado o mote (o ultmato). Começou a dança. Do bolso sairam duas notas azuis que já iam lançadas para a mão da comadre, mas Virgínia, alerta, quase se atirou para trás num movimento acrobático de choque, exageradamente representado. A mão de Tiana era afastada com um movimento de defesa, mas rapidamente voltava ao ataque, sob os desvios e fintas técnicas da outra. Mais um arco largo de braços, mais uns joelhos flectidos em defesa, e as mãos da pequena lutadora iam agora em perseguição dos bolsos do avental alheio. Virgínia, atacada, decidiu que o formalismo já exigia força. Rodou sobre ela própria, agarrou no braço atacante, e impediu as notas de saírem dos dedos. Tiana não desistia, os gritos de indignação aumentavam entre as amigas, as vacas mugiam ao passar no portão, e com um bife nos lábios, o gato corria pela horta, deixando um rasto de sangue pelo caminho. (focar mais no orgulho e no teatro). Ficaram sem se falar uns meses. Depois das partilhas, e depois de uma dança parecida, lá voltaram ao prato de Ti Tone as couves tão bem estrumadas da horta da amiga. Sabiam a alívio.
Por ali espalhados como pintainhos, eles assistiam a tudo. A maioria das tardes era um psicodrama formativo de onde, muito provavelmente, sairam as lições mais importantes para dominar o dramalhão ininterrupto, do resto da vida.
De tudo o que era obscuro desde que acordava, nada estava tão habitado de coisas obscuras como as tardes na casa do monte. Mesmo por trás da cozinha havia uma floresta de mimosas e loureiros onde moravam, com elevada probabilidade, homens velhos de barba branca e foices enferrujadas; no galinheiro passavam-se guerras entre bicos, cristas, e no viveiro dos coelhos as crias com poucos dias eram todas elas recompensa felpuda a aguardar a rapidez de uma lâmina. Tudo isto era um encantamento ou um terror – pouco havia de intermédio. Era essa parte da grandeza de andar por ali pela infância com pouco para fazer – ser vítima da mitologia dos olhos. A idade e o revirar de olhos (agora agentes iconoclastas) lá clarearam assepticamente todos aqueles mistérios – mas mesmo com a distância, ainda sentia a nuca fria à memória dos crimes da Velha. Maria Gancha. Ti Maria Gancha, como ouviam contar lá pela aldeia. Nunca a descobriram, e poucos acreditavam numa causalidade tão frivolamente gótica – mas ele sabia que tinha sido ela. Que tinham sido as lâminas dos seus dedos retorcidos e nodosos a deixar o corpo do Marquinho retalhado. Era uma história óptima para contar durante os copos em Lisboa. Lançava-a mais ou menos assim: “Tudo começou com a água do tanque…“.