Rotulando

Rotulando

31 Julho, 2017

Tal como os arquivos da Torre do Tombo ou os recortes da Caras de uma inquilina da rua de S. Bento, também a consciência se arruma em gavetas com acabamento barroco. Arthur Conan Doyle achava-as estanques, mas por cá testou-se a elasticidade infinita das paredes – e aparentemente todo o cosmos lá cabe, desde que convenientemente rotulado. Cada categoria uma aventura literária, um delírio e um covil, onde se arrumam os textos por afinidade musical. Aqui seguem, formalíssimos e tão volúveis como o autor, os rótulos deste gavetário interior.

 

Leossauro

Cruzando a via rápida do espaço-tempo desde as florestas do Cretáceo até às refinarias de petróleo do Golfo Pérsico, o saurópode Leo olha a sequência dos eventos históricos de forma surpreendentemente revolucionária: como sequência de eventos históricos. Usando as patas robustas para estilhaçar conceitos tão duradouros como o gelo de uma caipirinha, converte “tradição”, “porque sim” e “desde sempre” em combustível fóssil para uma gloriosa fogueira de Verão.

 

Café Consciência

Relatos para-verídicos de factos para-credíveis passados num café para-decente da Baixa lisboeta. Por graça de uma wi-fi misteriosa que pende sobre o Café Consciência, acesso à interioridade de consciências passadas, presentes ou futuras. Fenómenos e fenomenologia literária, patrocinados por cafeína e outros possíveis aditivos.

 

Morda Cidade

Porque nada aviva a vida de uma metrópole como assistir ao fogo purgatório da crítica pública com um café na mão e um folhado no bucho. Lisboa pela lupa desenrascada numa loja “típica”, olhada com a mordacidade inevitável.

 

Slam

Que gaveta mais prodigiosa que aquela onde são acolhidos os apátridas do mundo interior? Como o lugar de onde parte o futuro, ainda gérmen de si mesmo, aqui aguardam reinos próprios os textos que são, apesar de eremitas, parte de um corpo maior de Literatura – ou insanidade funcionante.

 

Poemário

Redigidos pela mão trémula do autor mas ditados pelas musas radioactivas do Labriosque, florações poéticas que nos concedem aromas intangíveis à razão.

 

Notícias mesmo verdadeiras

Inspirado pelo universo recém-descoberto de factos maleáveis, notícias que são o mais verídicas possível, em algum dos universos possíveis.

 

DiSecção de Comentários

Do Neolítico analisam-se pontas de seta, da era de Péricles literatura dramática, do Iluminismo diários revolucionários – da contemporaneidade estudar-se-ão caixas de comentários. Em lugar algum fermentam com tamanha exuberância os licores e o excremento da sociedade moderna – em qualquer caso, fertilidade inesgotável! Quando um texto se eclipsa perante a criatividade dos comentadores, não há como desperdiçar essa matéria para um novo texto – também ele comentado, gerando novo texto – num ciclo infinito de húmus intelectual a ser revolvido pelos anelídeos da opinião pública.

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