Morda Cidade

Selfie de Mónica

11 Agosto, 2017

 

Gustav Klimt, Judith I

 

Em honra de Sophia, a lucidez pronunciada.

 

Mónica é educadíssima. Rodou as primeiras saias no Colégio Luso-Francês, jardinou as amizades certas no São João de Brito e cumprimenta invariavelmente os educadíssimos conhecidos por quem passa, nas ruas da Estrela, com um rasgado “Olá, como está meu querido?”. Nada falha numa cordialidade que é, por fora e por dentro, a melhor educação da capital.

 

Mónica é infalivelmente sofisticada. Entre dois lambruscos no Sky Bardiz sempre muito alto como acha giríssimo ver os rapazes de mãos dadas na Avenida, a dar beijinhos – “E porque não? Acho super querido!” quando ninguém está sequer a tocar no assunto. Defende os animaizinhos, dá esmola aos mendigos do Rossio, compra quinoa, come tudo o que venha em cama de rúcula e porque não é uma pirosa, só usa casacos de pele no concerto de Ano Novo do S. Carlos.

 

Mónica nasceu rodeada de limpeza. Na maternidade tudo era branco. Branquíssimo o seu quarto de bebé, branco o berço, vigiado pela criada de branca roupa, brancas mãos, branca a pele da face, da nuca – mas nunca tão branca quanto a de Mónica. A sua família descende dos tenentes-mor de Viriato, dos conselheiros de D. João II e dos delatores dos Távoras – em última instância, os mais lusos dos lusitanos, tão portugueses que quase se diria nórdicos. Desenvolvera-se naquela família essa associação tão claramente lógica entre ambas as naturezas: português e branco. Isto porque é sabido terem sido os cavaleiros que limparam o sebo aos mouros quem importou a portucalidade. Cavaleiros franceses, presumo que se recordem. Antes disso tudo era barbárie. Depois disso, tudo foi contaminação. Para Mónica, Portugal é aquela pequena fatia de tempo imaculadamente encravado entre ambos.

 

Tão honrada é a origem dos Mónicas que se não poupam cuidados para manter incorrupta a linhagem. Nunca em séculos sucessivos a mancharam – tal como não se permitiria a um pouco de café contaminar o sossego azedo do leite. Nada havia de mais patriótico do que manter a chávena limpa. Ao fim e ao cabo, era herança francesa.

 

 

Para além de tudo, Mónica é supremamente inteligente. Não de uma inteligência ostensiva, mas sim matizada de pragmatismo, em intuições certeiras. Raciocina com uma perspicácia sem paralelo e nada escapa à sua compulsão de detective. Apesar de poder ter sido a mais condecorada agente da PJ, seguiu um dos caminhos possíveis de gente de bem, e fez faculdade de Medicina. Naturalmente isso não a impediu de continuar a aplicar aquele olhar de lince em qualquer oportunidade. Se durante as consultas entra um doente com três dentes mal pendurados à gengiva, sabe de imediato que abandonou a terceira classe para vender microondas adquiridos num armazém mal guardado de Mem Martins. Entra um preto chamado Fali, e sem mais informação zás! – o seu cérebro brilhante ilumina aquele passado escondido: vendeu as pratas do patrão em Luanda, comprou uma viagem para Lisboa, e depois de surripiar um número de segurança social lá vinha beneficiar dos recursos do SNS para lhe sacarem o fígado cirrótico. Sherlock empalideceria. Determinada em aplicar a sua argúcia em todas as tarefas, desenvolveu um método para apurar “como devia ser” a prioridade dos doentes na lista da consulta (recorrer à hora de marcação era “terrivelmente injusto, e absolutamente inaceitável!”). Assim, com os doentes aos magotes na sala de espera, olha a folha com lista de nomes e lá vai chamando – como deve ser. Primeiro as Constanças, os Braganças e Filomenas; depois os Jeffersons, os Miltons e as Marileides; e por fim, os Baldés, as Fatumatas e os Falis. Revolucionário. Cuidar, acima de tudo! – mas cuidar “dos outros” depois de cuidar “dos nossos”, que a gente tem de ser patriótica. E justa.

 

“Querida, posso entrar?” Amiga-de-Mónica bate à porta, entra a meio da consulta, e depois de meia dúzia de “Ais” e “Credos” lá se dispensa a baixa – estava com uma dor de costas tenebrosa, era bem preciso um mês para amaciar os músculos com algumas sessões de pedras quentes. Isto é um mundo civilizado, temos de ser uns para os outros.

 

Mónica é, naturalmente, muito ocupada. Entre hospital, clínicas, brunchesnos rooftopse o circuito do Avillez, Mónica mantém ainda um panteão de hobbies. O seu favorito consiste em ir ao Google Mapsver as casas onde moram “os outros” que lhe aparecem no consultório (no público, claro está). Lê um “Baldé” na lista, chama o Baldé, vê um tição negro entrar, ouve o português com temperos crioulos – e logo a boca se lhe seca, as pontas dos dedos fervem, e os olhos se esbugalham. Baldé sai. Sem demora, olha sobre os óculos, abre o mapa, activa o satélite, roda a câmara, segue a estrada de cimento rachado, e depois de confirmar a morada no computador – aha! É um barraco da Cova da Moura. Tinta descascada, certo; janelas enferrujadas, certo; buracos na parede – tinham todo o ar de buracos de balas perdidas. Recentes…Muito provavelmente disparados por Baldé.

Dois minutos.

Tudo descoberto.

Sherlock.

 

Mónica não suporta gente mal educada. Arrotos – ainda se ri. Caralhadas – dão uma certa cor. Mas aquela má educação de se quebrar o verniz da concórdia é que não. Uma vez dissera-lhe um colega (“um rapaz deselegante que distorce tudo o que digo!”) que a nossa missão não era selecionar quem é digno de cuidados, mas cuidar. Ainda teve a desfaçatez de insistir que “podemos opinar enquanto cidadãos, participar em decisões públicas enquanto cidadãos, mas não negligenciar doentes legítimos em prol de outros doentes legítimos, com base em opiniões pessoais. Justiça pelas próprias mãos corre o risco de não ser justiça”. Um alienado que não conhece o “mundo real”. Não havia nada mais lamentável do gente criada em torres de marfim.

 

 

Mónica não é racista. Mónica é patriótica. Defende a antiquíssima identidade portuguesa. Porquê esvaziar os cofres da nação com pobres chegados de África, tirando à boca dos pobres chegados nas cruzadas? Que responsabilidade temos nós sobre gente que vem de longe, tão longe que as nossas naus demoravam meses a transportar os escravos e a malagueta que lá colhíamos? Pobres por pobres, que se tratem os nossos. Pobres contra pobres, que os nossos vençam. Felizmente alguém os mantém alerta para quem é o inimigo. Felizmente há uma rica a velar por eles.

 

 

Mónica é o triunfo da hipocrisia. Não porque a exerça com pleno domínio da consciência, mas exactamente porque é já a sua forma de estar acordada. Em Mónica a hipocrisia foi herdada depois de gerações a refiná-la, laboriosamente. A cada novo ascendente-de-Mónica que foi nascendo, o banho dourado da hipocrisia foi cobrindo um pouco mais o ADN, camada sobre camada – de tal forma que em Mónica são já uma coisa só, uma hipocrisia-natureza, que quase passa por respiração. Mónica é hipócrita por força de genética. Tolerem. A culpa não é de Mónica.

 

 

Mas se há algo que importa saber sobre Mónica, é que andou sempre rodeada de outras Mónicas. Rodaram as saias nos mesmos sítios, jardinaram amizades nos mesmos sítios, bebem lambrusco nos mesmos sítios – sítios sempre altos, para manter o ar arejado. As Mónicas não são perigosas. O que é perigoso nas Mónicas, é o clube, e os sítios altos e inacessíveis, de onde podem ver todos os outros. Tocar todos os outros. Numa espécie de Google Maps– sem serem tocados.

Não haveria nada de mal nela, se não fosse essa proximidade às alturas. Cá de baixo vê-se menos, mas há que manter a atenção. A culpa não é só de Mónica.

 

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