Slam

Fabulário de Província – O Mal

1 Setembro, 2017
Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas (pormenor)

 

Antes que se explorem as circunstâncias que conduziram à descoberta do corpo do Marquinho, há que entender como o nosso protagonista veio a contactar com a grotesca figura de Maria Gancha. Ou, em rigor, entender o pouco que sobre ela se sabia, e o quão protegida a Velha se mantinha na sua vigília mortífera, ocultada pelo véu espesso do mito.

 

Aquela morte de alfaias ensanguentadas tinha sido para aldeia uma espécie de reedição do escândalo de incesto do padre Brito – durante alguns meses nada mais havia de que se falasse. O sucedido tinha elementos de mistério e de bizarro que mantinham os miolos e línguas em bulício, como enxame de abelhas em torno das merendas, no monte de S. Filipe. Cada aldeão se tornou um detective, em cada peito soava o sino de um benfeitor beato.

O único que ainda tentava fugir da confusão era o bêbado da terra, o Jaime dos Corgas. Solteiro cinquentão de calças largas e cara marcada por veias que se ramificavam junto às narinas, foi o Jaime quem primeiro viu o milho pintalgado de vermelho. Ia a cortar caminho pela quinta dos Carvalhos depois de uma manhã embebida em vinho tinto e apesar do sangue nas folhas, não queria demoras, ou ainda lhe vinham com dois chumbos no lombo. Os Carvalhos eram temperamentais. Ainda assim, inquieto e piscando os olhos confusos, deu umas voltas por ali à procura de alguma raposa ou galinha decepada. Nada. Ao lado o Ladino, rafeiro que guardava a quinta, ladrava com estertor em frente de uma máquina verde, no meio do campo. Jaime aproximou-se devagar, começando a perceber um cheiro forte a ferro e lama. Estuporado, parou a uns passos da debulhadora. Enquanto fazia o sinal da cruz, distinguiu uma poça de sangue meio coagulado que se formava por baixo da boca da máquina, de onde gotas grossas pingavam. Deu alguns passos em torno das lâminas, e pedindo a S. Miguel protecção contra o demónio, lá encontrou o rapaz feito em pedaços.

 

“Seu lambão! Ainda tinhas ajudado o moço, não fosse a pinga!”

“Oh Jaime, viste ou não viste um gajo fugir com um leitão debaixo do braço?!”,

“Senta aí, meu cara do carano – é ou não é verdade que o cão levava meio braço na boca?”

Estava perdido. Não fosse o amor sincero pelo dito, e tinha deixado de ir beber o seu quartilho de verde tinto à tasca de Vieiros.

 

A par da aventura do bêbado, a causa do acidente tinha sido amplamente debatida – nos cafés, à janela das comadres ou sussurrada nos bancos de trás do autocarro. Até o padre foi forçado a debater-se com o mistério, entre dois grunhidos mal dispostos à saída da sacristia. Despindo a batina, dois acólitos mais reguilas comentavam que o Marquinho tinha sido comido pelo rafeiro do Joel Matias.

“Não sejais estúpidos.”

Naquela mente de pastor cansado, acostumado às imbecilidades do rebanho, tinha ponderado, com clareza científica, hipóteses mais plausíveis. Um botão de segurança defeituoso da debulhadora, a distracção da criança enquanto infernizava algum gato vadio – até mesmo o tinto que o pai dava ao rapaz para enrijecer – cheiravam todas a causas que facilmente levariam uma das suas ovelhas a fim tão absurdo. Nem sempre as mortes são parte de um plano divino, algumas vezes são só imbecilidade. Era o rebanho que tinha.

 

Os factos foram distraidamente apurados pela PJ, que cedeu à insistência do Presidente da Junta, amigo próximo do pai do Marquinho.

“O meu rapaz não me fazia uma destas, era esperto como uma raposa o garoto!”

De casacos de cabedal e olheiras fundas, dois inspectores fizeram a ronda devida pela terra. À parte do Jaime, entrevistaram toda a família do Marquinho, o dono da quinta e até alguns colegas da escola. Aquela presença dos senhores guardas ainda bulia mais com as suspeitas do povo.

“Olha que a guarda está arreliada, aí há diabo”.

Arrelio de pouca dura. Depois de uns dias a circular pela terra e de meia dúzia de crises de choro de algumas Ti Marias e Ti Joaquinas, o carro da polícia deixou de vir. Veio uma nota no jornal – em três linhas atribuiu-se a culpa a uma bola de futebol encravada entre as lâminas da trituradora e a um curto circuito algures nas vísceras da maquinaria. Parecia uma peta para enganar o povo. Dissesse o que dissesse o Presidente, não enganavam ninguém.

“Eu cá na minha ideia acho que foi vinganças dos Carvalhos”

“Não sei…Sempre era menos uma boca e eles andavam mal, vá-se lá saber…”.

 

Tal como no resto da nação, em Cabreiros cada homem era um poeta. Foram muitas as narrativas criadas sobre o caso mas, fosse qual fosse o cronista, respeitava-se invariavelmente uma certa coerência mecanicista. Por mais pessimistas, em todas se sentia a asséptica falta de imaginação da vida adulta…Em quase todas, para ser rigoroso.

Assistindo a tudo num terror silencioso, o nosso protagonista manteve-se imune a causalidades sensatas. Digamos que foi alimentando o universo em que aquela morte faria sentido como se espicaçasse a chama num balão de ar quente. De lá de cima viam-se coisas bem mais estranhas que gatos vadios ou botões encravados. Lá chegaremos.

Andavam na mesma turma da primária, pelo que se podia dizer que era amigo do Marquinho – não um amigo próximo, mas lá jogavam à bola de vez em quando. Sentiu-se mal pela morte, claro, mas em grande medida porque lhe parecia ser o que os adultos insistiam que fizesse. ”Deves estar tão triste, anda cá, pobrezinho..”, “Fica descansado, ele está num sítio melhor, pronto, pronto…”. Como era bem educado, tentava sentir todas aquelas variedades de luto que lhe pareciam correctas.

Em boa verdade vivia inquieto, assustado – mas mais por causa do método da morte do que pela ligação ao rapaz. Aquilo não era um acidente, era um ajuste de contas. Era uma ameaça que se cumpria. Ninguém acreditaria nele se lhes explicasse, mas ele sabia-o. Havia ali a mão de uma sombra que todos achavam ser apenas mais uma história de embalar, uma ameaça que ele tinha aprendido a levar muito a sério. Com método, por via da cabeça bem organizada do rapaz vamos perceber como a Velha apareceu na sua vida, como foi crescendo a eficácia do terror que inspirava, e como se manteve oculta, a assombrar pequenas crianças incautas. Antes de tudo precisamos de contexto. De iluminação. Não há como conhecer a malevolência da Velha sem entender o submundo da aldeia, lugar de obscuridade que a maioria só pressentia. Só um pouco mais de paciência, caro leitor.

 

Talvez por permanecerem demasiado distantes dos enredos da cidade para que alguém se preocupasse em mitigá-los, sobreviviam na aldeia um número surpreendente de espectros macabros. As histórias eram tantas quanto as gerações: espíritos de tios mortos vinham possuir crianças para se vingarem dos pais; uma jovem virgem tinha sido fechada num quarto quase toda a vida, morrendo sem ter visto o sol durante anos; havia até a história de um viúvo cuja mulher tinha vindo do Além pregar-se à alma da nova esposa, dando-lhe ataques no meio da missa, em que se contorcia como um gato afogado. Quase sem falha, cada família tinha a sua experiência com assombrações e em cada sala, à noite, contavam como alguém as tinha visto ou sentido, no meio da escuridão.

Nem toda a aldeia, porém, era terreno para possessões. Os espíritos também tinham jurisdição. Viviam no fundo das minas de água, dentro dos espelhos descascados, nas encruzilhadas do monte, fechados em armários de madeira preta ao fundo de corredores compridos – e ai de quem lá passasse sozinho. Esses poucos recantos da terra eram pasto da malevolência gratuita de velhas figuras – incessantemente à espreita por gente sozinha. Sempre sozinha. O medo era mais eficaz na solidão de ninguém o vir a saber. Ele, em particular, nunca tinha visto nenhum desses diabos de enxada, é certo, mas sabia que existiam. Na verdade nunca vira quase nada do que sabia que existia – mas sabia que existia, de qualquer modo. Por formação e temperamento, tinha a determinação empática dos metafísicos cristãos – embora isso geralmente só se traduzisse em pedidos particularmente veementes ao menino Jesus, na noite de consoada.

 

De mais a mais, havia provas da existência desse mundo que abalariam o cepticismo de qualquer mula teimosa. Vejam o Luís, por exemplo. Fazia troça dos colegas mais medrosos, sempre que se falava em sombras no quarto ou de camas a abanar sozinhas. Pacóvio. Aprendeu-a bem aprendida, uns tempos mais tarde. A cara transfigurada do rapaz, transido de medo, depois de ver o “Fernando”, não poderia ter sido encenada.

“Tava a ir para casa, de noite, e tive de passar na cangosta ali em Vieiros.” Tínhamos feito uma roda em volta do Luís, à porta do edifício caiado da Primária – ele tinha faltado no dia anterior. “De repente, no meio do ar, aparece uma cabeça branca, de olhos todos abertos e…e…sem uma orelha. Caguei-me todo.”

Ficou como cera. Enquanto todos imaginavam aquela cabeça a pairar na escuridão, a pele pálida de morgado tornou-se quase transparente.

“Comecei a fugir e a chamar o meu irmão e a minha mãe. Olhei para trás, e a cabeça tava a virar-se para mim!” Enquanto contava, ia rodando o pescoço maquinalmente, com os olhos azuis esbugalhados quase a saltarem das órbitas. “Pensei que vinha atrás de mim, mas não – ficou ali de olhos abertos, e antes de desaparecer mostrou-me os dentes podres e a língua preta!… Caguei-me todo, caguei-me todo!!”

Ninguém emitia um som. Ao fundo só se ouvia a lengalenga do jogo da macaca.

“Nunca mais passo perto da cangosta. Nem que me mate!”

 

Fantasmas de delinquentes mortos, espíritos de velhos ressentidos, crianças de bibe abandonadas na floresta – todos emanavam de uma certa ideia de malignidade concentrada no Diabo. Podia-se desacreditar assombrações ou bruxedos mas esse ninguém ignorava, fosse qual fosse a idade.

“Faz uma cruz no chão com o pé, anda! Mais de força!”

A meio de uma fuga desesperada, a jogar à apanhada, tinha recuado de marcha à ré.

“Não vês que o diabo aprende o caminho se andares ó para trás?”.

À pressa, lá desenhava a cruz com o pé, com esperança de apagar o rasto de perseguição ao mafarrico. Deixava-se à cruz do martírio a função de bloqueador de estrada. Perguntava-se imensas vezes se a mesma cautela valia para o chão de madeira da igreja, onde certamente os poderes de tracking do demo não tinham grande utilidade – mas não queria que aqueles raciocínios parecessem desafios tentadores ao chifrudo, por isso continha o devaneio. Respeitinho, fosse qual fosse a jurisdição do capeta! Apesar do tédio das homilias a igreja era um lugar que inspirava um certo fascínio. Era uma espécie de quartel general dos exércitos de Deus, a nave mãe onde se estava sempre a salvo das intrigas do mal. Aos domingos, forçado a frequentar a missa das 8:30 logo após consumar a primeira comunhão, olhava com genuíno interesse para o conjunto escultórico do S. Miguel arcanjo. Com as suas bochechas rubicundas, olhos lacrimosos e ventre dilatado, a estátua do guerreiro divino era um prodígio barroco. Era de tal forma óbvio o valor artístico que fora até motivo de disputa entre as aldeias vizinhas. Contava-se que, numa manhã de Setembro, munidas de beata dedicação, chegaram as Marias e Joaquinas à sacristia, para arranjar os andores. A procissão do Senhor dos Passos era daí a dias e a dignidade dos santinhos exigia dedicação. Com cachos de lírios numa mão e baldes na outra, estavam as piedosas prontas para mimar os mártires, quando

 

“Pelo santíssimo sacramento”

“Pela virgem imaculada!”

“Ai que há diabo!”

 

No seu saiote carmim, braço nédio erguido e sabre rococó, o santinho tinha desaparecido do altar. Corria o rumor que, sob reivindicações de propriedade histórica, os vilões da freguesia ao lado a tinham roubado a meio da noite. Os homens correram tudo o que era quinta e prado num raio de sete léguas, as mulheres rezaram dúzias de responsos a Santo António, e as tendas de farturas foram avisadas de que havia o risco de não haver procissão nesse ano. Pobres dos descrentes. Naturalmente, Santo António iria honrar a fama de inspector: na manhã seguinte, ornada de lírios do campo e rodeada de pardalitos que entoavam madrigais, encontrou-se a obra prima, imaculada, no meio de um campo de milho – e ainda a tempo de desfilar na procissão. Era um milagre. Ou, mais provavelmente, ao tentar carregar pelos campos o peso da divindade local, algum pobre coitado ganhara uma hérnia e desistira.

 

Ora, avançando – sempre que ia à missa, notava a estátua do padroeiro da terra – mas não tanto pelo arcanjo, como pelo seu inimigo. Aos pés do guerreiro, com a cara pisada pela sandália delicada, estava o Diabo. Quem esperasse um robusto ditador de poderosas feições como o Satanás de Milton, não podia contar com menos do que desilusão. Aquele coitado aos pés de S. Miguel estava mais próximo de um diabrete fiúzas que furtava galinhas à socapa do que do soberano dos reinos demoníacos onde se afogavam, em pântanos sulfúricos, as almas danadas dos pecadores. Nos seus domingos de missa, o rapaz correu o sério risco de não respeitar com o devido temor o grande antagonista cristão – o que teria sido uma tragédia para a sua educação moral. Felizmente a voz cava dos anciãos soube gravar-lhe no espírito a imagem correcta. Pelas palavras do padre, dos avós, dos lavradores, acolheu desde cedo a imagem do diabo macabro, o diabo de garras sujas, que arrasta pelas pernas os homens perdidos, na escuridão sem ruído, nos lugares sombrios. O diabo da tormenta solitária, da mutilação onde está ausente, mais que a misericórdia, a beleza. Com o tempo, e por intercedência da bendita religião, foi salvo do vazio de viver sem medo.

 

O prezado leitor deve estar a ponderar quando começamos a conhecer as façanhas de Maria Gancha, a velha dos tanques, a homicida de dedos tortos. Pergunta-se quando compreenderemos o que verdadeiramente se passou naquele campo de milho, o que levou o Marquinho a acabar trucidado, no raiar da sua juventude. Nada tema, meu caro, há um propósito. E atrevo-me a dizer que não há como compreender a verdadeira malignidade da nossa vilã sem que se compreenda o terreno onde ela prosperou. Tal como os venenos, os mitos nascem da terra. Introduzo esta cosmogonia das assombrações cabreirenses para se entender o lugar específico que a Velha ocupava no universo do mal. As cabeça fantasmagóricas em cangostas eram apenas pálidos espectáculos de susto a desviar crianças de caminhos escuros. O diabo era um fingidor que ia exercendo um medo genérico, fundindo a punição pela vida dissoluta com a crueldade gratuita. Por pior que fosse, faltava-lhe a especificidade de uma narrativa. Era o mal, não era um mal com história – pelo menos não com história que se escrevesse nos caminhos daqueles montes. A Velha era algo diferente. Era a subversão cruel do colo, em campa. Era a imensidão de carinho das rugas de uma avó convertidas em sangue do neto, nos tanques da aldeia. Naqueles tanques. Naquela aldeia.

Maria Gancha aterrorizava o próprio demónio. No silêncio subaquático, era a inesperada força da voracidade antiga. Uma voracidade de mal de onde se dissipou toda a misericórdia, gasta pelo tempo e pelo abandono. Mas não prendo o nobre leitor por mais tempo, em contextualizações conceptuais.

Continuemos então.

Tudo começou com a água do tanque…

 

 

 

Ler Fabulário de Província – Capítulo Primeiro

Fabulário de província

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *