
“E ao centésimo dia Deus desistiu e foi de férias”.
Os primeiros cem dias da Criação tinham sido bem mais esgotantes que o antecipado. Achou que demoraria uma semanita, no máximo, a arrasar as más línguas, mas claramente estava enganado: ao centésimo dia de luz via-se perante a possibilidade de implosão daquele projecto milionário, o planetazinho azul, deixando enterrada naquele rochedo uma maquia choruda. Criar era fácil, gerir era uma maçada da dimensão das profundas retretes celestes (distribuídas pela sua companhia de saneamento, #Black Holes Inc).
Mais que por empreendedorismo, aquela aventura de criar a Humanidade tinha começado como reacção a um comentário desdenhoso. Teria ignorado a ofensa, não fosse o vexame, culpa dos seus colegas, gente do lucrativo negócio do Criacionismo. Ora estava Ele entre duas tacadas a supernovas, mais ou menos pelo décimo sétimo buraco, quando um grupo de intelectuais se aproximou, montado num cometa, a rir de alguma piada sobre electromagnetismo e incontinência. Conhecendo aquela corja, rezou ao Éter para que não tivessem ouvido o que dizia ainda há instantes, mas a audição dos deuses é terrivelmente apurada.
“Criar o quê, Acephalus?! Uma espécie de seres inteligentes?” atirou um.
“Não me parece que distribuir um recurso que te está tão em falta seja muito sensato…” cuspiu outro.
Gargalhadas.
“Fica-te por gerir o saneamento galáctico, parece-me mais adequado à profundidade dos teus talentos …”
Gargalhadas.
Atordoado com aquela verborreia pomposa, não conseguiu proferir uma palavra.
“A bientôt, chéri – vê se seguras o capachinho”.
E dando gás à cauda do cometa voaram para longe. Deixando no ar um cintilante rasto de acrimónia, rasgaram o céu na direcção do décimo oitavo buraco.
“Cephaleius, liga ao empreiteiro” disse Deus rangendo os dentes.
A Terra que se preparasse: vinha aí a #Humanidade.
Rubro de fúria e sem dar descanso aos capatazes, em sete dias tinha a obra quase toda feita. Lá de cima olhou aquele delineamento delicado das praias, o azul fecundo dos lagos, os vértices brilhantes das montanhas, e sentiu-se orgulhoso. Estava ali um resort de primeira. A #Humanidade ia garantir-lhe a fama, a Terra® encher-lhe os bolsos – era um génio.
“Vês quem tinha razão, Cephaleius? Aquele bando de nerds impotentes…”
E com o indicador a ajeitar uns óculos imaginários, arreganhou os dentes, enquanto cacarejava num tom apalermado
“Vai decorar galáxias Acephalus!”, “Olha para mim a usar palavras de meio metro e a abanar as minhas mãozinhas minúsculas, Acephalus!… Pfff. Papalvos.”
Numa urgência intestinal, baixou a túnica até aos tornozelos, agachou-se sobre um buraco negro, e enquanto fazia a sua vida, decidiu escrever um cintigrama. Havia que espalhar a notícia do sucesso do empreendimento pelos quatro cantos da galáxia. Estava prestes a premir o bozão para enviar a mensagem, quando aos seus pés aterrou, esbaforido, um dos seus escribas. Pouco habituado a cavalgar o pardal-gigante azul que o trazia da Terra®, o mensageiro tropeçou num asteróide, e estampou-se com um estrondo que ressoou até Plutão.
“Senhor, Senhor! Um caos, um apocalipse!”
Na sua jaqueta coçada e calças rasgadas, o jovem escriba tentava recuperar o equilíbrio e controlar a náusea, acomodando os óculos ao nariz.
”Uma praga no empreendimento – uma praga, digo-lhe eu!”
“Gafanhotos? Vulcões? Dinossauros?”
“Não. São os humanos.”
Explicou. Durante alguns dias os Homens tinham-se entretido a dar nomes aos bichos e a comer fruta proibida, mas foi distracção de pouca dura. Liderados por um barbudo com excesso de peso e cabeça rapada a que chamavam Vespúcio, abriram os portões do Jardim e puseram-se em marcha dali para fora. Era inacreditável, verdadeiramente impressionante: em menos de nada havia já uns bons milhares de bípedes a povoar a maior parte da superfície da Terra®.
“Como compreenderá vossa Enormidade, esta conjuntura ominosa comporta problemas logísticos gargantuescos, há toda uma plêiade de consequências formais que…”
Deus levantou a mão a exigir silêncio. Ergueu-se, vestiu a túnica, e enquanto o vórtice do autoclismo levava atrás meia dúzia de estrelas, disse com solenidade:
“Respira, criança. Deixa as palavras de meio metro para a brigado dos caixa d’ óculos. Qual é o problema?”
Esforçando-se por invocar termos menos exigentes, o escriba explicou a situação. No Éden a produção de fruta e carne era ilimitada, mas o resto da Terra® não tinha sido abençoada da mesma forma. Naturalmente, tinha tentado levar os humanos de volta para o Jardim, mas desistiu depois de uma tentativa de apedrejamento liderada por Vespúcio. Se aquela quantidade de humanos imortais continuasse a circular e a consumir tudo o que encontrasse, em meia dúzia de milénios o planeta azul passaria a planeta uva-passa.
Deus grunhiu meia dúzia de impropérios, enquanto guardava o cintigrama nos rascunhos, para enviar depois de controlar esta pequena crise. Deu meia dúzia de passos pelo escritório, olhou o canhão de neutrões herdado do bisavô, e avançou a solução:
“Fácil. Mata-se tudo.”.
“Er… Senhor, mas isso seria um pouco…antiético?”
“Balelas, cidadão! A ética é escrita por quem manda! É o que dá querer ter crianças, não há um momento de descanso…Cephaleius, o procedimento do costume – aponta um asteróide ao planeta e pontapeia.”
“Vossa Luminescência, um momento, um momento! Não será essa atitude uma derrota perante a Associação Comercial Criacionista?” avançou o jovem repórter, aos arranques, com as mãozinhas unidas junto ao peito.
Deus estacou. Tinha-se esquecido dos nerds do cometa. Se desistisse agora ia dar razão à multidão que o tomava por um megalómano fútil que só se importava com cintigramas e resorts planetários…
“Hum…Alguma sugestão?”
“Na verdade o Altíssimo Senhor já a encontrou…”
Num passe de malabarismo político, o escriba sugeriu que em vez de se matar a multidão de humanos imortais, se convertesse os humanos em mortais. Em vez de ser culpado de dizimar um povo inteiro, deixava-se para o Tempo a culpa das mortes. Deus achou brilhante, e certificou-se que a ideia passava como sua. Pegou na pena, molhou-a em matéria-escura e escreveu o decreto que retirava aos mortais a bênção da imortalidade. Montando-se no passaroco azul, o jovem escriba fez-se ao caminho, com a missão de difundir pelo planeta a boa nova.
Ao décimo dia, um novo estrondo veio perturbar a sesta de Deus. O escriba voltava, desta feita com um aspecto quase irreconhecível – roupas rasgadas, uma das lentes dos óculos partida e um olho roxo . Tentando controlar uma hemorragia nasal com um braço no ar, lá explicou as aventuras dos últimos dias. Tornados mortais, os humanos aperceberam-se que…bem, morriam. A princípio até houve adeptos do decreto, que achavam aquela vida terrena um tédio. Porém, à medida que tribos inteiras iam desaparecendo, os humanos aperceberam-se que a sobrevivência da espécie estava em risco. Ficaram coléricos. Juntaram-se todos em quadrilha, e sem meias palavras, alguém lançou a primeira pedra. Foi Vespúcio.
“Senhor, são uns bárbaros, estão descontrolados! Esqueça o que disse, lance o asteróide!”
“Calminha meu menino.” Deus levantou-se do cadeirão, tirou da barba um pedaço de frango esquecido, e depois de ouvir o sucedido, pôs a mão desproporcionalmente pequena no ombro do rapaz.
“Não há asteróide para ninguém. Eis o que vais fazer.”
Novo decreto. Nova viagem no dorso do pardal azul em direcção à Terra®. Impossibilitado de corrigir o erro da imortalidade, Deus tomou uma decisão inspirada. Os humanos iam passar a reproduzir-se. Num reluzente decreto divino, recheado de desenhos de mau gosto pelas margens, o repórter levou, uma vez mais, a boa nova ao planeta inteligente.
Ao décimo primeiro dia, Deus continuou a não conseguir descansar. Nova aterragem desastrosa, nova explosão de indignação do jovem. Mais que o apedrejamento, começava a ficar cansado de ser a face das decisões inspiradas de Acephalus. Desta vez os humanos estavam insatisfeitos com a forma como a reprodução se processava. Sendo todos iguais, era muito difícil decidir, num casal, quem recebia a semente, quem carregava a criança no ventre, quem a expelia das entranhas…depois das primeiras experiências, ninguém estava disposto a expor-se àquela violência. Deus foi rápido. Novo decreto. Criava-se a Mulher.
A partir de certo ponto, Deus deixou de acreditar que iria descansar nos próximos tempos. Confirmou-o ao décimo sétimo, ao vigésimo terceiro, ao quadragésimo e ao quinquagésimo quinto dia – por algum motivo alienado, os Humanos lá tentavam, de cada vez, dar cabo do seu escriba. Era uma espécie de gente insatisfeita, que protestava por qualquer insignificância. Num dia queriam ar puro, no outro liberdade, no seguinte não queriam ser vítimas de furacões e do forno de lenha em que se estava a tornar a Terra®. Putos insaciáveis. A única coisa que ia divertindo o divino Acephalus era a criatividade que demonstravam nos métodos com que aterrorizavam o escriba – depois de apedrejamentos vieram cruzes de madeira, depois óleo a ferver, cordas a esticar braços e pernas e até – veja-se o prodígio – sacos de baratas atados à cabeça do garoto.
Eram de uma raça catita aqueles miúdos – pensava Ele, enquanto cofiava a barba, com um orgulho mal disfarçado dos seus barbarozinhos.
Quem ia ficando progressivamente mais intolerante à redacção de decretos, era o pobre repórter. Inexperiente, começou por anunciar as ordens ipsis verbis, para não ofender a dignidade de Acephalus. Depois dos primeiros ossos partidos, porém, decidiu ir colocando um pouco do seu talento literário nos textos, para evitar mais acidentes. Falhou redondamente. Tentou outra abordagem. Discretamente, e certificando-se que Deus não espreitava, começou a apoiar os descendentes de Vespúcio, dando-lhes razão na sua insatisfação para com o Senhor. Péssima ideia. Mais que um mensageiro fraco, não tinham paciência para traidores. A proeza valeu-lhe o saco de baratas e mais umas pauladas na coluna escoliótica.
Decididamente estava a chegar ao seu limite.
Ao nonagésimo nono dia, o pardal azul aterra uma vez mais em frente ao mini-golf de supernovas de Deus.
“Então rapaz, isso não está nada bonito!” disse, enquanto esboçava uma expressão de nojo perante as nódoas esverdeadas na cara do escriba.
“Não se preocupe, excelência. Está tudo bem…”
“O que foi desta vez…?”
Conflitos internos. Ataques, massacres, guerras. Depois de uns tempos estacionados em diferentes partes do globo, alguns humanos tinham começado a circular. Fosse porque os recursos na sua região se esgotassem ou porque queriam conhecer um pouco mais do mundo, as estradas e mares da Terra® estavam agora cheios de migrantes. O único problema é que a outra metade do mundo, que não se mexia, não achava grande piada a invasores. Tomavam o pedaço de terra onde foram parar inicialmente como seu, e não toleravam quem viesse tentar habitá-lo. Mesmo depois de lhes explicar que só havia Um verdadeiro proprietário daquilo tudo, mantiveram-se irredutíveis. Se algum forasteiro viesse no horizonte, ia levar com o mesmo festival de apedrejamento que lhe tinha calhado e ele. Aparentemente os humanos eram mais apegados a pedras que uns aos outros.
“Muito estranho, meu rapaz – digo mais, muitíssimo estranho! Eu quando os criei criei-os perfeitos, se eles estão a avariar a culpa já não é minha.”
O jovem evitou a custo um revirar de olhos do calibre da Via Láctea.
“Compreendo, Senhor. Que faço?”
“Espera lá fora.”
Com uma cãibra na mão, puxou da pena. Procurou na sua mente alguma ideia brilhante, mas já só pensava nas férias em Andrómeda. Passou horas naquilo, deu voltas ao escritório, atirou umas bolas ao mini-cesto, mas nada se iluminava. Olhou em volta. Depois de se certificar que o repórter e Cephaleius não andavam por ali, activou os polegares e pesquisou
“Decretos Brutais: não bater a migrantes”.
Em menos de nada, lá achou um tratado cheio de termos pomposos, do qual pouco entendeu. Mas estava bonito, e parecia inteligente. Das linhas que decifrou, percebeu que tinha de enviar “Inteligência” e “Tolerância” no mesmo texto, ou a coisa não funcionava. Parecia simples. Escreveu as duas palavras com grandes volteios barrocos, enrolou o decreto, e chamou o mensageiro.
“Na verdade fatiga-me todo este alarmismo, meu rapaz… é uma coisa muito simples de se resolver. Compreendo que seja demais para um plebeu, mas para nós, deuses, as respostas a este tipo de questões surgem espontaneamente.” – lançou, enquanto caminhava de queixo levantado, em volta da secretária de quasar castanho.
Contendo um segundo revirar de olhos, o escriba esticou a mão.
“Para que não vás dizer que sou um tirano, passa pelas brasas uma horita. Estás com péssimo aspecto”.
Enviando o jovem dálmata para a sala de espera, Deus decidiu que, depois daquela proeza, merecia um pouco de descanso. Sobre a secretária estava um convite para o encontro dos AA – Amantes de Armas – da Sociedade Comercial Criacionista. Maravilha! Era um arraial de tiroteio e caça grossa regado a bom whisky, onde se juntavam os compatriotas que adoravam disparar a todo e qualquer corpo celeste. Era o nonagésimo nono dia daquele tormento. Merecia desanuviar.
Com o lacaio Cephaleius a seu lado, montou no seu meteoro cromado, acelerou no negro acetinado do espaço, e chegou ao encontro com a pompa de um Criador.
Vestida a rigor, com todo o tipo de canhões, pistolas e espingardas quânticas em riste, a nata dos deuses disparadores estava presente.
“Acephalus, como estás, chéri?!”
Eram os palermas do cometa. Esquecera-se que a maior parte pertencia à associação – mais para a minar do que por amor declarado à arte de rebentar com coisas.
“Então esse projecto ambicioso da “Inteligência” – já encontraste forma de multiplicar o inexistente?”
Gargalhadas.
“Olhem, corre lindamente – é um empreendimento brutal, toda a gente diz, toda a gente adora.”
“Sim, Acephalus, mas excluindo o teu Ego e os seus Discípulos, quem mais sabe do projecto?”
Gargalhadas.
Estava farto. Eram muito corajosos aqueles nerds, ali a rirem-se como garotas do secundário, por trás dos seus óculos pretensiosos e cabelo despenteado. Eles iam ver quem era o Macho ali! Empurrando um servo que segurava um molho de armas, pegou numa espingarda e pôs-se a postos. O grupo de intelectuais tremeu, mas Acephalus olhava o céu à procura de algo para matar. Naquele momento era um caçador a mostrar às presas o risco que corriam. Depois de apertar os olhos pequeninos à procura de um alvo, viu no céu uma mancha que batia as asas. Com destreza inesperada, Deus empunhou a espingarda, apontou, e seguindo a ave com a ponta da arma, disparou. Tiro certeiro.
Com surpresa, ouviu-se a voz de Cephaleius, que tremia, inquieto.
“Se-se-senhor…aquele…aquele não era o pardal que o escriba usa para ir à Terra®?”
Piscou uma vez mais os olhos estúpidos. O pássaro caía em espiral, e algo mais caía, em direcção à fornalha incandescente de uma estrela. Era o repórter. Lá se ia o decreto.
Um dos nerds avançou, com desdém:
“Terra®? Acephalus, é esse o glorioso planeta em que tens experimentado a Criação?”
Deus olhou o globo azul lá ao fundo, no céu, e simulou a sua mais convincente indignação:
“Aquele pardieiro?! Por quem me toma, cavalheiro!”
Ninguém sabia. Era melhor assim. Mais valia desistir daquele bando de bárbaros, talvez o decreto nem fizesse assim tanta falta. E de mais a mais, já algum louco lá na Terra® tinha escrito que Deus tinha morrido. Podia ser que acreditassem.
Com o queixo elevado, Deus despediu-se de todos e, pesadamente, montou o seu meteoro cromado.
“Cephaleius – para Andrómeda!”
Era o fim dos decretos.
Ao longe, a caça rodopiava, em sentido descendente. Enquanto caía, e certo da perdição, o escriba não conseguiu evitar pensar numa última frase de redondo gosto literário. Mais que bela, era justa. Para todos. Rindo-se da sorte dos Humanos, e antes do último decreto se tornar poeira cósmica, disse ainda, entredentes:
“E ao centésimo dia Deus desistiu, e foi de férias.”