
Os disparos das metralhadoras soam a mar e embalam-nos, no quarto escuro do bunker. À luz fraca de uma lâmpada eléctrica lêem-se, com dificuldade, os recortes de jornal espalhados pelas paredes. Num deles, um rapaz olha-nos directamente – cinco anos, talvez – deitado numa maca, com a cara queimada até não se distinguir músculo de pele. Foi a vítima recente de uma explosão, quando os pais tentavam desviar gás clandestinamente, num bunker semelhante ao nosso. Como uma janela segura para zonas interditas da cidade, outros recortes vão despontando na escuridão das restantes divisões. Nas linhas de jornais internacionais vibram notícias sobre milícias formadas exclusivamente por mulheres, sobre as centenas de habitantes que morreram com o frio, sobre a coragem de bósnios e sérvios que decidiram ficar na cidade, mesmo sob a ameaça constante das explosões e da pontaria implacável dos snipers. Na casa de banho, à luz de velas assentes sobre um cemitério de cera e fósforos gastos, um deles foi colado junto ao espelho partido. Em poucas linhas, conta como um morteiro desfez em pedaços uma família inteira, enquanto esperava numa fila para conseguir um pouco de água. Ao meu lado, no chão, ouço um amigo mexer, perturbando a litania contínua das balas. Concentro-me na respiração dos outros. Dormem profundamente, ignorando as narrativas que a escuridão oculta. O cobertor é áspero como palha de aço, as paredes cinzentas e esburacadas, mas ainda assim, não é difícil adormecer.
Durante o planeamento da nossa visita aos Balcãs, cedendo à atracção pelo insólito que move a maioria dos viajantes, decidimos ficar num antigo bunker da guerra de 1992-1996 – mas à porta de uma casa parcialmente em ruinas, sentimos uma certa vergonha de quem consome despojos do sofrimento alheio. Sem sapatos, numas calças com um padrão de camuflagem, recebeu-nos o 01, filho do dono da casa, autoproclamado responsável pela preservação do bunker e da memória do cerco de Sarajevo. Na tentativa de sustentar a família e combater a indiferença, tinha sido dele a ideia da gravação de metralhadoras em loop contínuo, a escolha da luz de velas na casa de banho, a sugestão de construir uma reprodução de um bunker subterrâneo – cave onde hoje, em alternativa à sobrevivência, se pode assistir a documentários sobre os quatro anos de conflito. Desde o primeiro contacto tornou-se claro que ele pretendia ser um exemplo anónimo, um auxiliar educativo na nossa experiência, e não um indivíduo. Sem questionar – sem o questionarmos – não contrariámos essa vontade. Era o 01, era um sobrevivente, bastava. Nasceu um ano antes de a guerra começar, pelo que as suas memórias mais precoces são da vibração do chão quando as bombas rebentavam nos edifícios em volta. Já não se recorda das noites nos abrigos comunitários, mas fala com precisão da sujidade e do frio naqueles espaços apinhados de prisioneiros na sua própria terra.
Com as calças do exército, e uns óculos Aviator, o 01 conduziu-nos ao jipe. Sob a cabeça rapada, a crueza do olhar é amplificada pelas covas profundas de olheiras antigas. Mantendo infalivelmente a coerência, tivemos de presumir a sua idade. A etnia ou religião permaneceram um mistério, adensado pelo nome incolor. “01 é uma homenagem ao meu pai, foi o nome de código que lhe escolheram durante a guerra”. Disse-nos com orgulho que o pai era um pacifista. Nunca disparou um tiro – chegou até a recusar-se carregar uma arma na linha da frente, durante a totalidade dos quatro anos. Denunciava o orgulho apenas por um ligeiro tremor na voz. A sua postura perante a maioria dos temas era tão críptica como o nome. Contava-nos tudo de forma atonal, sem que a voz ou o conteúdo revelassem qualquer opinião vincada. Havia apenas uma tensão contínua, um estado de alerta incansável onde, porém, a cordialidade não falhava.
Navegando as estradas da cidade com uma destreza brusca, levou-nos para longe do centro histórico, onde a Biblioteca Nacional fora recentemente reaberta, no esplendor do seu estilo neo-mourisco original. Fica a impressão de que o embelezamento da cidade serve mais para apaziguar o mundo fora de Sarajevo do que quem lá vive. É uma graça que se concede ao espectador, tão distante do hábito do terror como se estivesse do outro lado de um ecrã de televisão.
Passamos distraidamente pela Ponte Latina, onde há mais de 100 anos Gavrilo Princip assassinou o Arquiduque Francisco Fernando. Alguns metros ao lado do lugar onde ocorreu o casus belli da Primeira Guerra Mundial, dois amantes – o “Romeu e Julieta de Sarajevo” – morreram sob os tiros das metralhadoras sérvias. Um bósnio-sérvio cristão e uma bósnia muçulmana, abraçados durante semanas no meio da ponte, numa triste metáfora da impossibilidade de união, naquela cidade sitiada. A história foi contada com a displicência de um recado, mas em nós agitou-se uma asa de comoção. Em silêncio, apreciámos o facto de o nosso anfitrião não explorar o melodramatismo cinematográfico que facilmente levaria às lágrimas os turistas do Ocidente.
Há, entre nós e eles, uma essencial diferença de pudor. O nosso nasce de uma asséptica educação televisiva; o deles é uma espécie de sabor real a ferro e sangue. O nosso é um eflúvio de alma virgem, vertendo de uma sensibilidade intacta. O deles é o estoicismo sem orgulho que nasce da banalização da morte. O nosso pudor foi ensinado por histórias; o deles por balas e memórias. Por algum motivo o nosso parece muito mais natural, por ser indignado e pugnaz. Desta diferença fundamental de educação emocional, nasce a impossível compreensão do que é nascer no seio da guerra. Do que é viver quatro anos com balas, morteiros, granadas a preencher o fundo de silêncio de uma cidade rodeada por morte. Olhando deste lado contemplativo da vida para o 01 e a família, parece óbvio que todos vivem no alívio de uma paz com quase duas décadas, fruindo de uma bonança crescente. Sim, talvez ainda os acorde, a meio da noite, um ou outro sonho atormentado por espingardas e amigos que os querem matar – mas à parte disso deve habitá-los uma confiança luminosa no futuro! Mas a guerra não terminou. Quem a viveu, não saiu ainda do cerco. Estão todos lá fechados, numa cidade onde um olhar fora da janela podia significar um crânio estilhaçado, onde os minutos a aguardar por um pouco de água numa fila podia ser interrompido pelo desmembramento sanguinolento de famílias inteiras. Por mais tempo que passe, persiste sempre essa referência. O limiar de normalidade deste povo, destes perpétuos sitiados, está muito para lá do que o que podemos compreender. Não se trata de uma resiliência honrosa, da ética de bravos guerreiros, como em Esparta ou no insigne exército da Prússia. Trata-se de não se poder viver de outra forma quando se passam mil dias sob a balada de morteiros.
Em certo ponto da guerra brincava-se com a morte – como não o fazer sem ceder a vida? O jogo era simples: era preciso chegar ao outro lado da estrada. Grupos de rapazes adolescentes alinhavam-se por trás de um prédio. Desafiavam-se uns aos outros, aguardavam o momento certo, como quem salta para o mar, de uma falésia. Espicaçados pelos amigos, com um riso leve de quem joga ao pião, corriam. De cima começavam a chover tiros. Por vezes, sobreviviam.
A meio da tarde chegámos a um dos lugares mais fustigados pelos ataques, o bairro de Grbavica. Com o mesmo laconismo, 01 pede-nos para olharmos para a fachada do edifício Loris. Pelas janelas vê-se roupa pendurada em estendais, notam-se algumas luzes acesas, um gato a namorar o pêlo – os sinais costumeiros de um sábado sonolento num bairro residencial. Por fora, poupando apenas as janelas, o cimento está coberto por buracos. Alguns pequenos e redondos, outros profundos, com um halo de pulverização, como um grande dente-de-leão – formas que se aproximam de um tipo acidental de beleza. Cada buraco corresponde a um tipo de munição – e como quem mostra as árvores do seu pomar, ele sabe de cor cada uma. Conseguimos imaginar como seria a superfície do edifício: lisa, elegante – mas depois de anos de maleita, a fachada está coberta por cicatrizes de varíola. Como nos lembra o 01 num amargo impulso poético “há uma doença do espírito que se vê como uma doença nos edifícios”. São as histórias de quatro anos de tentativas diárias de assassinato, que se inscreveram na pedra. Imaginamos que, em parte, se manteve aquela máscara de agressão como memorial – mas o raciocínio é, uma vez mais, reflexo da nossa ingenuidade. Simplesmente não havia dinheiro que sobrasse para remodelamento. Olhamos o bairro com solenidade. Ele olha com o dasavisamento do hábito – apontando buracos de morteiro no chão como quem faz notar um particular entalhe barroco numa catedral.
No parque infantil ao lado de mesquita Kralj Fahd, um grupo de crianças brinca sob o olhar dos pais, que sorvem chá nas esplanadas em volta. Correm em grupos, como gatos, e à parte os risos e gritos só se ouve, ao fundo, o muezim a chamar para oração. Recortado no chão de cimento, junto a um baloiço, está um rectângulo que emoldura uma espécie de desenho vermelho – parece uma rosa gigante, pintada em traços livres. Ali caiu um morteiro atirado pelas forças que rodeavam Sarajevo. Os buracos que as explosões criaram, pelo chão da cidade, lembram desenhos de flores. O 01 conta-nos que, depois da guerra, nos lugares onde o disparo tinha matado alguém, os defeitos foram preenchidos com resina vermelha. Hoje são as rosas de Sarajevo. À nossa frente, um grupo de crianças passa por cima da flor. Voltamos ao momento presente. Seguimos caminho.
É impossível não sentir vagas de indignação a correr os punhos, o intestino. Somos demasiado alheios a esta forma de destruição deliberada. Na nossa mente só se destroçaria sistematicamente vidas alheias por força de algum acidente, de alguma falha oculta na engrenagem da cidade. Como adolescentes intocados e idealistas, indignamo-nos com ferocidade. Quase tudo parece fútil à luz da sentenciação de gente que não tinha por onde escapar, e que queria nada mais que coabitar pacificamente. Nesta ânsia por compreender os fundamentos do inconcebível ouvimos, ávidos, a História recente, lemos os passos da progressão política daquele vale – de reino sérvio para império otomano, de império austro-húngaro, para Jugoslávia – e tentamos encontrar algo suficientemente vasto – suficientemente vital! – para justificar a aniquilação de irmãos. Mas na lisura fria da ideologia, da identidade, da pátria – não encontramos nunca o calor de uma pele viva. Não vemos qualquer justificação para colocar escudos humanos em frente a ficções fugazes.
Em Sarajevo – em todo o lado – as identidades pelas quais se começam guerras foram-se sucedendo como camadas de tinta numa parede velha – e matar por uma camada de tinta é obsceno. Mais que obsceno, parece deliberadamente estúpido. Como se pode esquecer este conceito de cada vez que se dispara uma bala em direcção a alguém a quem um dia chamámos vizinho? Como se pode aguentar esta ficção durante todos os dias de quatro anos sucessivos, sem que num instante se pense: “Como pode ser minha inimiga a criança que matei?”. Como pode uma criança ser uma ameaça, um alvo a desmembrar com um tiro de morteiro?
No extremo ocidental da cidade ergue-se a torre recente de um hotel. Ao lado, numa ruína de cimento, ainda hoje se escreve, diariamente, o “Libertação”. Exceptuando uma única edição, o jornal manteve uma tiragem diária, durante a guerra. Equiparámos aquela coragem deontológica ao esforço de resistência dos teatros revolucionários, que aumentaram exponencialmente o número de peças que apresentavam, durante o conflito. Com um pouco mais de pragmatismo – ou pessimismo – o 01 louvou a esperteza dos jornalistas, que recorriam a qualquer subterfúgio para evitar serem recrutados para a linha da frente. Persiste a dúvida de que a verdade fique algures a meio caminho entre o nosso romantismo optimista e a frieza niilista de quem viveu rodeado de fratricidas.
Depois de algumas horas de companhia, não é difícil ser contaminado por algum desse desalento, dessa descrença na autodeterminação do Homem. Quando o exército rodeou a cidade e a transformou num campo de tiro, ninguém perguntou aos habitantes de Sarajevo se queriam ser Bósnios, Sérvios ou apenas Homens. Pelo que hoje entendemos, a maioria só queria viver. Porém, aqui ou no resto do mundo, raramente somos nós, individualmente, quem toma decisões de guerra. Não foram os sérvios, os bósnios ou os croatas quem escolheu a morte e a aniquilação em defesa da nação. Foi o papel, foram os relógios e as assinaturas. Foi a longa cadeia burocrática que partiu de um escritório longínquo, onde um pequeno círculo de generais e presidentes ia calibrando os limites do território. Nunca nenhum deles viu corpos tornarem-se uma massa indistinta de carne humana. Num jogo apressado jogado a sangue, moviam apenas peças num tabuleiro.
Como ocidentais perguntamos como nos pudemos manter impávidos perante uma barbárie contínua nas traseiras do nosso glorioso continente. Mas, uma vez mais, vivemos a guerra e a morte com a mente de um estratega. Não vemos mães, filhos, vizinhos que morrem diariamente – vemos as teias que se materializam em fronteiras e diplomacia. Nas nossas salas vivemos bem a morte, porque é um conceito; em Sarajevo chocamo-nos furiosamente em frente a um prédio com buracos de bala. Não há como não sentir alguma vergonha da nossa hipocrisia, da nossa preguiça. Temos a superfície da sensibilidade empolada, e rugimos com estertor perante a mais pequena sugestão de indelicadeza. Mas, como dita um adágio demasiado clarividente, as agressões incham, desincham e passam. Mudamos de canal, permanecemos sentados no sofá, e seguimos para o anúncio de umas férias nos trópicos, com a promessa de algum descanso do exercício da vida.
Já aos habitantes de Sarajevo, pouco os incomoda.
“Para nós, estabilidade económica é um luxo. Não preciso disso para nada. Só quero segurança para mim e para a minha família. Não ter medo de morrer”.
Antes de regressarmos, atravessamos rapidamente a fronteira virtual com o lado sérvio de Sarajevo. Aparte algumas marcas culturais eslavas, tudo o resto é igual. Na sua existência quotidiana, toda a gente é igual, no lado bósnio. Num silêncio desconfortável, o jipe leva-nos de volta ao bunker. Olhamos a cidade com um prazer menor. O agente do desalento é discreto. Em Sarajevo a Morte já voltou a colocar a sua túnica e passeia oculta, pelas ruas. Ninguém que não lhe conheça o disfarce a nota, passando rápida, rente à vida.
Com um suavizar da expressão, o 01 revela, tenuemente, alguma leveza, em resposta ao nosso esforço de empatia. Quase em segredo, diz-nos que o pai e mãe jamais serão os mesmos. Continuam em guerra. Sobre cada instante pesa ainda a sensação de que tudo se pode dissipar num acorde de metralhadoras. Novamente, quase nos envergonhamos por jamais termos sofrido tanto quanto eles. O nosso interesse pelas histórias macabras da guerra parece uma indignidade, uma curiosidade intelectual que nos entretém. Lutamos contra a sensação e esperamos que esta viagem seja parte de uma educação ética indispensável – a única que evitará que vivamos algo semelhante.
Viajemos por dentro da ameaça que há em todo o lado. Não é possível viver no medo, mas é indispensável viver alerta.
1992 foi há dois fôlegos. A mesma insídia primitiva que motivou as grandes guerras do passado, era ainda real há 20 anos. Julgávamos que, tal como as fogueiras da Inquisição, também o assassínio sistemático seria uma vaga memória de tempos mais rudes. Mas o progresso civilizacional não é o progresso ético. São caminhos separados. Temos todas as bibliotecas do planeta no bolso das calças, mas continuamos a considerar linhas na areia mais importantes que uma vida digna para todos. Continuamos a deixar as nossas ficções de religião, economia e grandeza nacional chegar a níveis tamanhos, que matar parece pouco para as fazer valer. Esta grande alucinação colectiva é um prodígio de horror. É como matar um irmão para lhe ficar com o brinquedo. Chegam vagas de desespero às costas do Mediterrâneo, minorias étnicas tentam preservar a sua integridade e sobreviver a estigmas antigos – mas continuamos a querer defender o brinquedo. A nossa identidade é importante, as nossas referências devem ser defendidas – mas quando se sobrepõem a pressupostos de fraternidade e bem-estar comum, não estamos a defender nada que não a nossa infantilidade.
Sendo honesto, não é muito diferente escrever num bunker remodelado ou num quarto de hotel em Paris. Na verdade, se excluirmos um certo cheiro a cimento, é tudo igual. O colchão no chão é igualmente confortável, a escuridão tem a mesma limpeza, a mesma libertação do perpétuo movimento do dia. Deitados na escuridão, em Sarajevo, estamos, ainda assim, deitados nas nossas vidas em Portugal. Ouvimos a maresia das metralhadoras, e saudamos o sono que chega, depois de um dia de turismo. De manhã, partiremos. Deixamos uma cidade cada vez mais bela, mais diversificada. O 01 e a família ficam numa cidade rodeada de tiros. Perpetuamente alerta, todos. Pelo menos aprendemos que Sarajevo não é História, é premonição. Pela nossa própria preservação – e mesmo que só de vez em quando – estejamos nós, também, alerta. Há uma balada de morte em todos nós.