
Porto, 25 de Outubro de 2017
Reli tudo. Três dias sentada no bordo da cama, encostando de vez em quando a cabeça à almofada, coberta de linho e plástico branco. Não descobri nada, mas ao menos tive a confirmação de que vivo num padrão infatigável de mediocridade. Não sei muito bem o porquê de escrever mais, não tenho nada de novo para dizer. É triste que nem sequer o meu desalento possa ter alguma nota de surpresa. O tédio é a última das agulhas que se enfiam debaixo das unhas. Se as pintasse de vermelho podia pelo menos ver sangue – mas a pior parte do que me dói é não ter um emblema exterior que o mostre. Não há nenhuma pústula que feda, não há nenhum coto de perna que eu tenha que arrastar na calçada dos Aliados – ninguém me dá direito ao exorcismo do meu sofrimento. Tenho um peito forte, dois pomos redondos de laranjeira viçosa e tenho pernas de moça nova. Disse-me o Azevedo o outro dia que pareço russa – é da cara quadrada, das maçãs do rosto pontiagudas, e deste ar de robustez, mesmo nas misérias de um Inverno que não acaba.
Voltei a sangrar dos dedos e a manchar as páginas – fui estúpida, arranquei as crostas que já tinha, com o esfregão da loiça. Devia ter voltado à esponja – mas é inútil, com uma sujidade tão funda, com um lixo tão fino, que se prega aos poros – e não consigo – não consigo! – deixar de sentir escorrer um óleo pegajoso pelos dedos, se não me arderem as mãos das lascas do esfregão. Agora estão secas. Até a dor do álcool me sabe bem, é das poucas que não é inútil, que tem a exuberância necessária para me inspirar alguma paz.
Ontem, numa hora qualquer – já era noite há algum tempo, deviam ser nove – li a única coisa que ainda lembra esperança, no meio deste testamento de ansiedade. Escrevi que estava contente por poder começar a trabalhar, que ia
“Pôr fim aos anos de merda do secundário. De merda mesmo. Sentar-me todos os dias no nojo daquelas carteiras onde o sebo das mãos e dos braços se cola, ver o nojo destes porcos que se esfregam uns nos outros no intervalo, como se não pudessem deixar o corpo quieto, como se tivessem de andar a escorrer saliva, suor e sebo pela cara uns dos outros. A meterem todos a boca, à vez, no mesmo bolo do Central, a babarem pestilência – que gente asquerosa!”
Curioso como me consigo constranger com o estilo redundante – e francamente vulgar – do que escrevia. Ah, constrangimento…constrangimento é prerrogativa de quem expõe o que quer que seja. O meu silêncio, a minha navegação apática pelas ruas lá fora, não permite alternativas à impressão que deixo – quanto mais a constrangimento…“Pôr fim aos anos do secundário.” Que ingenuidade tosca. Como se este tempo que vivo não fosse circular, não fosse o velódromo onde pedalo incessantemente, sem poder tocar em nada, sem poder descansar um só segundo, junto às paredes.
Contempla, pequena, a glória desta vida, cantada de um terceiro andar húmido da rua do Almada: nunca consegui aguentar nada. Emprego nenhum. O mundo não se ajustou a mim, nem poderia esperar que se ajustasse. Pode ser-se estranho, mas não se pode ser esquisito quando ninguém nos sustenta. Não se pode evitar a sujidade quando nos dão roupa suja para lavar, não se pode relembrar as fezes de rato quando nos dão latas de feijão para meter em sacos, não se pode vomitar com o cheiro a mijo quando o trabalho é limpar sanitas em S. Bento. Não se pode fazer grande coisa quando o mundo todo é uma ameaça. Tenho o corpo em ferida, as mãos em ferida, e por dentro já não tenho quase nada a não ser ansiedade. Sou só a minha insuficiência. Já não falo com ninguém. A única pele de que me aproximo é velha e cheira mal, dorme na sala, numa cama suja onde lhe troco a fralda e lhe dou a comida, quando chego à noite. Foi a herança que me ficou de uma vida que nunca me quis para ela. A única coisa boa do quarto é que não chegam cá gemidos, e pelo menos no sono posso ter alguma largueza de movimentos.
Se for honesta, julgo que decidi escrever, hoje, por causa do requinte estético que há na aniquilação de quem fui. (Quanta pompa, diria a miúda!). Não da aniquilação de mim por inteiro, mas daquela miúda revoltada do secundário, impelida para a vida por um confiança etérea. Pois avanço na demolição: nada melhorou (que não se prive ao menos a página do prazer de ver concretizar-se uma profecia de pequenez!). Fui tentando mostrar um pouco mais, ser um pouco mais – mas como ter a certeza de ser alguma coisa melhor se ninguém o pode confirmar? Não houve jamais proximidade que chegasse, vontade que chegasse para mudar essa impressão – a da louca que se contrai num espasmo quando lhe tocam, que abre as portas com a manga do casaco e não consegue sair da casa de banho porque nunca tem as mãos limpas que chegue para voltar lá para fora. Tudo me enoja. Todos me enojam. Toda esta fragmentação do mundo, esta deterioração contínua de tudo, me enoja. Não há uma coisa em que toque que não contenha um fragmento de decadência, que não tenha à superfície restos de cadáver a despenhar-se continuamente, a colar-se a mim, jazigo amordaçado. Tudo se transforma, tudo se transforma…e é com a face viscosa da transformação – a face do suor, do bolor, da gordura da pele, da ameaça invisível de bichos a crescer sobre tudo – que me debati a vida inteira. Luto contra o que há por fora – como se por dentro eu pudesse ser contaminada! Talvez uma contaminação fosse até misericórdia, fosse um pouco de fertilidade nesta sacristia pálida, a incubar um odor de beata. Mas sou mais que esta consciência da minha desadequação ao mundo. Sou a prisão e a condenada. Não, não houve nada de novo depois do Secundário – e olho com fascínio para a alienação que me levou a achar que haveria.
Escrevo para dar, ao menos, uma dignidade literária a esta aparência de nada. E para quê este crescendo de expectativa – escrevo porque encontrei – encontrarei – afinal, um pouco de descanso. Um sítio – mais do que um sítio, um sustento – onde posso suspender a mágoa incessante que vai da pele ao osso. Anteontem passei na Rua das Flores. Quase no fim do caminho, aproximei-me da vitrine de um alfarrabista – quase nunca páro em lado nenhum, mas algo me atraiu até junto do vidro. Era uma pintura. Era uma impressão de uma pintura, com o bordo branco do papel um pouco amarelecido – acho que nunca a tinha visto antes. Acima de tudo, nunca tinha sentido aquele vazio. Era uma aparição azul. Não consigo ainda entender a novidade, a estranheza daquela sensação. Foi como se um santo chegasse, de braços abertos sobre um campo de batalha, e desse a vitória ao pequeno exército condenado. Estava em cima de um molho de outras impressões, mapas, serigrafias. Entrei e comprei-o. Está aqui no quarto, está à minha frente, em cima de um lençol branco, sobre uma cadeira. É o meu pequeno sacrário.
Talvez antes o tivesse achado um pouco palerma. É uma sereia mal desenhada enredada no céu, e parece um dos desenhos do filho da merceeira. Mas há ali qualquer coisa…qualquer coisa que inquieta. Olhei para ela, e atravessei de imediato o Limbo, para um lado oculto da vida – tão rápido como quando alguém morre e tudo muda, sem que mude, porém, a substância. Talvez a palavra não seja precisa, mas há na pintura – pelo efeito, mais que pela disciplina – verdadeira beleza. Sobre o azul há uma emanação magmática de luar que nasce do espaço todo, que é um princípio de luz presente na noite, como se cada vazio nocturno estivesse prenho de claridade e limpidez. É um lugar que fica fora desta lixeira a céu aberto – é um lugar que fica suficientemente longe do mundo para que seja conspurcado por ele. Há um silêncio de primórdio no azul, na baía onde nem sequer o mar é vivo. Existe uma dormência de universo suspenso, onde a vida tem esse talento límpido de não ter de acontecer para ser vivida. É um cenário de memória inscrita, sem que algo se tenha passado – o espaço vago que há dentro de todos, devido à lenda de mouros, de cimitarras e de luares desertos. É belo, o que quer que o defina. Mas em mim, é algo mais…Acima de tudo – gloriosa, impiedosa liberdade! – é limpo. É limpo. Dentro do quadro não há sujidade – dentro do lugar onde ele se inscreve, não há podridão. Na palavra, na imagem, no conceito, a superfície do mundo foi retirada da Humanidade que a cria. Resta-me apenas esse sítio de onde não devia nunca ter saído – a concepção. Existir é renunciar à eterna limpidez da ideia. Existo o dia todo com as mãos sujas – por mais limpas que estejam. Circulo nas avenidas como se fossem fossas, respiro um ar que é sempre pestilento, como os fumos que saem de esgotos a ferver. Mas dentro daquela pintura – no caminho de éter-apenas que há entre o interior de quem pinta e a solidão de quem contempla – posso por fim descansar. Não precisei tactear uma pele que segregue e excrete a putrefacção de cada corpo. Senti aquele homem em absoluto, senti a inteireza de uma identidade que veio, sem mácula, até à pureza que há em mim. Imaculado, sem tocar em nada… De dentro dele, para dentro de mim, sem que esse fruto, essa impressão branca, azul e vermelha tocasse em parede alguma de imundície. Não vejo alternativa mais plena, nem distracção suficientemente poderosa para ir para além deste entendimento… É pouco para quase todos. Mas para mim não deixa de ser bonito, que a melhor parte da minha vida seja azul, seja luar, e seja uma sereia suspensa sobre o céu de Nice.
O mundo é sujo. A Arte é limpa. Foi a única alegria que me permitiram. Fora disto, não há senão redundância e retorno à esfera de fel e fumo. Entre os dedos lascados, a própria caneta já me é uma agulha infectada – basta. E na verdade já deixei aqui escrita ironia que chegue entre o que fui e o que sou – e a ironia é ser a mesma coisa. Vou voltar para dentro da baía. Começo a sentir um sono novo, sem cansaço, um abandono apenas, a água e juncos. Há três dias que aqui estou, sem me mexer da beira da cama, para não quebrar o esforço. Para não perder a chave da completa dissolução com a maresia. Já não volto. Não sei que horas serão, mas ao quarto já não chega barulho nenhum. Lá fora é noite, e a parede da sala é grossa. Três dias sem ruído. Vou esperar que tudo em volta desapareça – e talvez desta vez consiga lá ficar. Talvez desta vez chegue suficientemente perto – das palmeiras quietas, do ramo de flores, dos braços da sereia. Livres. Brancos. E limpos – impossivelmente limpos.