
Nascida nos fartos idos de 80, Constança é a mais perfeita floração do seu Tempo. Não tanto uma floração espontânea de baldio mas antes um eclodir sistematizado de canteiro, mantendo à superfície, sem esforço, apenas as pétalas ideais a polinizações adequadas. Resultou esta estrumagem numa cidadã completíssima, combinando dotes que assombram os imprudentes: cosmopolita, porém capaz de apreciar com ternura o anacronismo dos saloios; refinada, porém disposta a arriscar uma conspurcaçãozinha ao disparar a moeda para a caneca do sem-abrigo; sensível, porém altruisticamente rígida quando evita que o mesmo sem-abrigo se torne dependente de comoções alheias, ao enxotá-lo assim que sente a ameaça de uma conversa deprê (“é que me custa ouvir aquelas coisas, sei lá!”).
A coroar esta constelação de talentos, importa referir que Constança é bela. Não apenas bela na exibição da herança de finura que lhe legaram – Constança mantém a beleza minuciosamente enquadrada numa paleta suave, com paciência, com discrição monástica. Ilustrando: devota beauty junkie, evita a exuberância das pirosas da Alta ou da Baixa (há que temperar a panache com alguma sobriedade). É um facto que o seu cabelo (capaz de reflectir a Via Láctea) exige um champô extraído da orquídea-fantasma das florestas do Bornéu e que a sua pele não tolera senão o creme de algas maldivas colhidas em noites de lua cheia por crianças de 10 anos – porém desenrasca-se praticamente como uma monja, que foi essa a educação que lhe deram.
Provinda de um meio de orgulhosos empreendedores, Constança sempre primou por conquistar as coisas de que precisava – perdão, que merecia – sem que concebesse o contrário. Até ao dia em que foi concebida, numa violência de estupro, uma surpreendente excepção. Com um esgar de stress pós-traumático, ainda hoje recita aos inconvenientes as linhas da conspiração que lhe negou entrada em Medicina – negação que se manteve mesmo depois de apresentar as credenciais fundamentais de “é o meu sonho”, “EU tenho mesmo vocação para pensar nos outros” e “veja quem é o papá”. É que não se tratou apenas da humilhação pela recusa de um valor tão óbvio – foi o aterrar de testa nesse planeta inóspito onde nem tudo é criado ao serviço de Constança.
Estóica e ardilosa, enveredou por outras aventuras igualmente edificantes e aplicou o seu bom gosto numa boutique de autor no Príncipe Real, repleta de ponchos de pêlo de vicunha e chanatas extraídas de impalas etíopes. O trabalho deu-lhe oportunidade de juntar uns trapinhos destinados a viagens semestrais a Bali ou a Floripa, mas ainda assim agasta-a aquele migalho de ansiedade coleccionista (“Estou sempre com o dinheiro contado, é pavoroso…”).
Graças à amizade com Babi – que apesar de ter nascido no Barreiro é um doce – foi contactando com alguns seres humanos caricatos, entre gins em copos de balão na Pink Street. Para além de uma certa “liberalidade” de linguagem, fascina-a nesses jacobinos as perspectivas alucinadas que têm sobre a gestão da vida. “Mas como assim tenho de ser eu a pagar o carro e o apartamento?!”. Aparentemente ainda nem toda a população se familiarizara com o modus operandi da contemporaneidade, em que o património acumulado da família tem como finalidade financiar os “bens essenciais, ora essa!” da juventude. Sabe-se perfeitamente que os pais ficam felizes por nos ajudar – e sendo honestos, a maioria nem saberia como gastar o dinheiro, que nunca fizeram mais nada senão trabalhar – não sejamos fundamentalistas, por favor.
Responsável pela perpetuação da dinastia, mãe de Constança fez absoluta questão de conceder a educação mais distinta à pequena – estruturada pelos colégios do Restelo mas baseada em discursos piedosos repletos de citações de Paulo Coelho e do Novo Testamento. Discursou à saída da aula de ténis, em presença das tias (literais e figuradas), e nos domingos depois da Basílica da Estrela, enquanto os cavalheiros discutiam coisas sérias com o padre Gomes. Porém, e como seria de esperar, nenhum momento erigia com mais vigor o pilar do carácter do que os dois minutos antes de entrar para a escolinha. Com os quatro piscas acesos, paradas a 20 milímetros da porta, mãe de Constança fixava com solenidade os olhos confusos da princesa. Falando na terceira pessoa (como um apóstolo ou qualquer cidadão que se apresente) edificava aquele espírito virgem, comovida, embalada pela melodia matinal das buzinadelas, na estrada bloqueada pelo Mercedes evangelista. E assim se educou, com literatura e ideologia, a petiz da Ajuda, regando-a com conselhos úteis de Marcos, Lucas, João e Mateus, e com a inquestionável compreensão de que o tempo de Constança era mais importante que o dos plebeus, brutos incultos que tinham horas para chegar ao trabalho.
Apesar da sua reverência pelo decoro e autoridade familiares, Constança não deixou de se permitir algumas rebeldias adolescentes. A mais feroz (e admirável) decorreu quando esteve às portas da morte com uma amigdalite “das pesadas”. Numa incursão com o Guga pela serra de Sintra, foi apanhada por uma dor que nem aos ciganos se deseja, sendo forçada a recorrer ao hospital público da zona. Depois de meia dúzia de mães e de velhinhos hemorrágicos se recusarem a deixá-la passar à frente (“eles não devem ter ideia de como isto dói!”), lá foi vista por dois “estagiários” com muito má vontade. Perante o arraial de choro copioso e da recusa em beber um gole de água, foi-lhe sugerido internamento. Gustavo predispôs-se a ligar para a Luz, mas Constança recusou. No meio daquele tumulto apurou-se a rebeldia, e foi subitamente inspirada pela coragem do pequeno Simba. Se o príncipe do Serengueti se arriscou a ser devorado por hienas imundas no cemitério de elefantes, Constança conseguiria aguentar uma noite nas enfermarias selváticas de um hospital público. “Guga, pode ligar à mamã. Eu fico.” Duas horas depois, ao volante do Mercedes evangelista, mãe de Constança conduzia a rebelde a um quarto privado, com chinelos macios, ecrã plasma e o antibiótico errado.
Para ritualizar a chegada esforçada aos vinte anos de vida, Constança resolveu testar o seu espírito missionário e deixar os nervos da mãe em frangalhos. Saturada da limpeza marmórea das piazzas europeias – e supremamente frustrada por, da pobreza, só conhecer os trapos cirróticos à porta da Estrela – partiu para o Quénia, onde finalmente se poderia comover com pobrezinhos a sério. Sendo menina bem formada, seguiu o plano com método: lacrimejou perante os pezinhos descalços que brincavam (directamente!) sobre a terra, moeu um bagalho de mandioca de dedos bem esticados e, consciente do seu papel de embaixadora ocidental, divulgou o esforço missionário com um portfólio de fotos (no filter) a abraçar sem nojo os corpos vigorosos dos pretinhos – #fellinghumble. No transfer de regresso, alheada, com a cabeça encostada ao vidro, relembrou a gratidão nos olhos de uma menina quando lhe deu um chocolate – mas foi forçada a parar porque o ar condicionado avariou. Indecente. Desembainhou do telemóvel, cerrou os olhos e escreveu uma review arrasadora na página do resort, que “não se tratam assim as pessoas – não somos animais”. Os amigos admiraram a militância de Constança. Constança sorriu mas tentou não dar importância à questão. Era um fardo, mas alguém tinha de fazer um esforço para mudar o que estava errado no mundo.
Constança é jovem e nunca será velha – recusou a velhice como herança, aos velhos que a carregam. Constança é bela, e jamais perderá encanto – com a sua mestria de superfície e de distância terá a eterna admiração dos míopes, que somos todos. Constança senta-se no banco de trás mas nunca é conduzida onde não pretende. E é neste poder consumido em futilidade que reside a tonalidade pastel desta tragédia. Constança é jovem, bela e trilha com mestria os caminhos restritos, sem nunca seguir para lado nenhum. Quanto a nós, ora compomos o bouquet, ora olhamos embrutecidos para a escolha exímia de cada pétala, enxame entontecido de pequenas obreiras. Mas vá, relaxemos um pouco. As vísceras do mundo a apodrecer não deixam de dar um moribundo deslumbrantemente maquilhado. E, certos de ter sempre um ar condicionado funcionante, dêmos graças a Constança e à sua vigília incessante pelos saloios, pelas casas sem renda e pelos ponchos de vicunha.