
Sopro é uma peça escrita por Tiago Rodrigues, Director Artístico do Teatro Nacional D. Maria II, estreada na 71ª edição do Festival de Avignon. A obra centra-se na ponto do teatro nacional, em actividade desde 1978, elemento-sombra que sopra as falas tragadas pelos fantasmas do palco, quando estas se evadem aos actores, seus veículos. Sopro está em cena até ao dia 19 de Novembro, na sala Garrett do TNDM, em Lisboa.
A experiência do teatro (de se ir, mais do que de se assistir, e distinto de se ser “do” teatro) aproxima-se de um sacramento. Sem excessivo lirismo, não se trata da propriedade de conceder uma certa transcendência ou de outras subtilezas hiperbólicas da sensibilidade, mas sim da inevitável preparação da alma para um evento distinto de toda a restante experiência humana. Na antecipação da ida, na ida e na sua ressaca, o espírito entra numa estrada dominada por outros códigos, onde se observam com claridade elementos da paisagem, anteriormente ocultos pela miopia da perspectiva. Numa medida semelhante, ocorre uma transmutação desta natureza (embora num órgão diferente da interioridade) na experiência do museu. Da mesma forma que uma lata de sopa é lida de uma forma no supermercado – possivelmente como uma péssima opção –, quando colocada entre as paredes ritualísticas de um museu a sensibilidade regula-se para a receber de outra forma, prepara-se para uma interpretação que transcende o primeiro contexto. A experiência do teatro vibra nisto, no contexto. Na especificidade de este contexto não existir em lado algum, e de a experiência humana perder quando o ignora.
Mas não nos demoremos em considerações pouco defensáveis sobre latas de conserva. Adiante.
A incursão a Sopro começou num final de tarde de Outono, em frente à estação do Rossio, moldura neomanuelina a enquadrar o bulício da Baixa lisboeta. Aí se inicia a primeira paragem desta peregrinação, a Activação. Não tão deliberado mas também parte do espectáculo, encanta assistir à dramaturgia social que há num escurecer fumarento de castanhas à porta do D. Maria, em noite de espectáculo. Envoltos em fumo e fervor, apinham-se grupos de iniciados: em torno de vinho branco, nas cadeiras exteriores, as vedetas televisivas que preparam o paladar para beber a “grande arte”; em colmeias sempre vibrantes de impaciência, a comunidade dos skinny jeans, dos sobretudos coçados e das mochilas minuciosamente rasgadas; com as golas altas – uniforme oficial do refinamento intelectual – e com a displicência do cigarro, os ungidos que movem o mundo (do espectáculo e fora dele); navegando o foier e as salas interiores, avistam-se as senhoras de cabelo armado, de braço dado, coroadas de berets, piazzolas e turbantes, circulando sob risos confiantes de salão. Ainda antes de se passar o portal da peça, a Activação é uma revelação de um nicho muito particular da cidade. Entremos.
Sobre o palco há apenas um piso de tábuas velhas entre as quais cresceu, em algumas horas, ervas que nos chegam à cintura. Na plateia há ainda o dia exterior. Discretamente as luzes atenuam-se, o bruaá diminui como a janela que se fecha, e com um romper brusco da exegese exterior, somos forçados a atravessar o portal. Inicia-se a Imersão.
Torna-se claro desde cedo que o subtítulo da peça poderia ser o cliché (sem que o seja ela, jamais) “uma carta de amor ao teatro, e a quem o faz”. Mais do que isso, é uma dissecção anatómica do teatro, em que vão surgindo as vísceras, sempre ocultas pela pele tradicional das outras obras. Com a lâmina suave da candura, Sopro expõe-nos muito do que é vivido apenas pela gente do teatro. Revela-nos o universo de quem cria a ilusão, de quem executa o ritual da experiência teatral: as conversas que conduzem a um texto, as pequenas intrigas de bastidores, a preparação de figurinos, a dinâmica prussiana do ensaio e acima de tudo – metáfora perfeita do engano – o ponto. Sempre o ponto. Em torno dela, ao longo de toda a peça, vão orbitando os corpos desse cosmos privado, vão eclodindo atabalhoadamente os deuses da mitologia do teatro – os fantasmas de Antígona, de Fedra, de Dinis, de Natália Ivanovna, de Berenice, de Harpagão -, fantasmas que circulam entre os atores, transitando de corpo em corpo com a fluidez da possessão, conduzidos pela varinha de condão, pelo sopro que vem da mulher de preto.
É neste ponto da peça, talvez, que acontece a Transcendência. Pelo sopro mas sempre por graça da propriedade religiosa do teatro, o personagem vai circulando como éter, entre actores – e por fim pode circular também entre espectadores, deixando uma outra percepção sobre as possibilidades da vida interior.
Como só poucos filmes, alguns quadros e muitos livro o conseguem, uma noite de teatro perturba-nos. Convertidos temporariamente num oitocentista sentimental, olhamos a lua com a dolência presunçosa de poetas, ponderamos a validade de tudo, inscrevendo-nos numa caricatura existencialista – e o próprio troco da cerveja no quiosque, à saída, torna-se algo fútil e perverso. O teatro atinge-nos de uma forma que nenhuma outra expressão artística atinge. Não é necessariamente mais profundo. É mais próximo. Atinge-nos pela experimentação eficaz da vida. Se há algo que todos dominamos – com melhores ou piores resultados – é viver. O teatro parece demonstrar que até nessa tarefa nos portamos pobremente, e que deveríamos repensar a forma desinteressada como escovamos os dentes ou como interagimos com o motorista do autocarro – péssima, qualquer que seja o talento do improviso. Teatro é uma espécie de versão ampliada e sacralizada de alguns nichos da vida. Ao contrário do cinema, expõe-na com os mesmos gestos e a mesma materialidade do nosso próprio quotidiano, por via da presença física, tridimensional, sinestésica do actor . Pelo seu gesto, o actor torna-se um suga-almas, tomando a do personagem e a nossa, portando-se melhor – ou mais “presencialmente” – que nós, na nossa própria vida, quando o permitirmos levar-nos a esse lugar.
Na maioria das vezes os dias ocorrem num imediatismo contínuo, sem solenidade, sem a ponderação do instante. Os nossos enredos privados decorrem por entre o ruído, como se fossem as migalhas de ouro que vão no meio da areia, no leito de alguns rios. O teatro filtra a vida. Colhe o ouro e isola-o sobre o pano escuro. Escolhe o instante, lima-o até reflectir a luz como se pretende, prepara as palavras com o sentido preciso da intenção. Somos nós a existir com a preparação dos deuses. Com o dom da clarividência, tornando a existência não só mais solene mas mais deliberada.
Mesmo neste domínio, Sopro engana-nos magistralmente. Apresentar um artifício do teatro – o ponto – como se fosse uma representação da vida, é conceder a mais poderosa visão de como há sempre algo de independência – de resistência! – na implacável passagem das Horas. Sugere-nos a possibilidade de nos tornamos narradores e narrados, a ideia de que temos em nós os subterfúgios que permitem conduzir a vida como uma peça, como uma vida, como uma peça – numa elipse interminável.
Sopro recorda que o cinema é a concretização do sonho; o teatro é a redução da vida. Talvez nessa violência resida uma força subvalorizada de mudança interior, e de mudança social. Talvez. Enfim, ponderações para textos futuros. Seguimos. Estamos quase lá…
Em cem minutos de malabarismo dramatúrgico oscilamos entre a voz própria da ponto, a voz de Shakespeare, a de Molière, a voz recordada do director, a voz deificada de Amélia Rey Colaço – e depois de nos perdermos, não chegamos a lugar nenhum. Não há caminho nem enredo a não ser a exploração dos limites do ofício teatral e do que ele nos pode dar. Depois de cem minutos, fecha-se o pano sob ovações sinceras. Com a comoção perfeitamente planeada do encerramento, saímos. Descemos a escadaria, voltamos ao fumo, à noite, ao bulício. Tudo o resto, todos os outros, cá fora, decorrem ainda na tempestade. Nós resistimos um pouco mais, na bonança de um pouco de clareza. Caminhamos seduzidos pela ideia de que há algures em nós um ponto a valer-nos, caso nos esqueçamos de como continuar a viver. Caso erremos, o que jamais queremos. E como se fosse o mote perfeito de uma noite de teatro – desta noite de teatro –, lembramos as palavras que surgem algures, recordação de que o teatro nos serve a nós e à nossa incansável resiliência humana: o ponto existe porque existe por vezes o erro,
“que lembra que afinal o teatro também pertence à vida”.
Permitam-se um pouco de silêncio, e se puderem, ouçam também este sopro.