
O céu abriu-se e deixou cair uma barrigada de água em cima da cidade. Cheira a terra e a algo mais que não distingo – como um metal ardido ou cânfora, algo assim. Foi como se a tarde expelisse uma cria, parida num jacto de alívio, entre membranas e molezas com cheiro a carne (ando a trabalhar nas metáforas, o que achas desta? Frase longa, eu sei…Sempre me pareceu que os melhores escritores gostam de sangue, vísceras e nojo para descrever as coisas banais, torná-las menos cliché, mais heróicas. Gostei da imagem da vaca prenha, a abrir o corpo num céu cinzento, a inundar a cidade com um desabamento líquido… sempre se ganha um tom decadentista – nenhum escritor histriónico é levado a sério – basta leres Coetzee, já te disse dúzias de vezes, meu molenga.)
De qualquer forma, chove. Uma chuva grossa, constante, como um outro fantasma a assombrar a cidade. Gosto destes dias. Talvez porque sempre imaginei Oscar Wilde a escrever à chuva, no escritório, e porque nós sempre tivemos tão pouca chuva. Seja ou não por melhor enquadramento cénico, apetece-me escrever, o que é bom. Sim, quem diria que depois de tudo o que aconteceu, começaria a fazer alguma coisa. Não serei afinal o iludido-de-fundo-de-quintal que só consegue coleccionar projectos adiados hã,? Escrevo, mantenho-me entretido e sempre satisfaço uma pequena ambição. Para além de que não fico à mercê de resultados imediatos, que são grande parte da minha angústia. Nesse aspecto somos parecidos – por exemplo, imagino que neste momento nada te daria mais gozo intelectual do que fazer-me uma bela chave de braços, não é, senhor bicípites…mas já não há cá essas facilidades de irmão mais velho, já sou um homenzinho, queiras ou não tratar-me como um. Homem. Palavra grande, mas já posso escrevê-lo.
O que queria dizer, A., é que comecei a escrever, e desta vez parece ser a sério. Foi sugestão do psicólogo, mas não tenho de lhe ler nada, felizmente.
Sim, comecei a ir ao psicólogo. Ias rir-te…Não é uma besta, mas acho que nem ele sabe bem o que fazer, não é bem a situação de quarentona neurótica pós-divórcio a que deve estar habituado. Parece-me boa pessoa, pelo menos. É engraçado, eles têm todos uma bonomia muito natural nos gestos, não há como não sentir um certo aconchego no estranhamento com que nos olham. Disse-lhes que não precisava, que era assim, tímido de mim mesmo -, mas ninguém dá muito crédito à incerta lucidez de um refugiado. Que palavrazinha melindrosa, ah? Estamos rodeados pelo laço apertado do termo. Aos olhos dos caridosos temos todos um passado de martirizados; para os reaccionários, conjuramos uma ameaça sussurrada; e nos intestinos dos comodistas-de-sofá, ferramos com força uma mandíbula de ténia. Não há muito por onde escapar de uma dessas possibilidades, isso implicaria demasiado esforço de não generalização – e ninguém tem tempo para se permitir olhar para os outros um de cada vez. Nem aqui nem em lado nenhum, não me entendas mal – eles não são má gente. Vivem noutro lugar, tão longe do nosso como se a nossa casa fosse a Terra Média. De qualquer maneira, não tive como fugir às sessões semanais com o psicólogo. Não sei se faz parte das condições de residência mas também não me apetece testar os limites da generosidade. Não cansam de me lembrar da generosidade em receber-nos. Não canso de agradecer.
Gostarás de saber que continuo o mesmo rapazinho enfezado e bem educado que diz “muito obrigado senhor” com a cabeça baixa, e que pede desculpa mesmo quando é algum bruto a ir de encontro a ele na rua. Reflexos exteriores de um espírito pouco preparado para a coragem. Não houve nada de muito revolucionário na minha vinda para cá – já disse, não há nada para o psicólogo desenterrar neste baldio da minha vida.
Logo depois de chegar, ainda antes de me apresentar na faculdade, puseram-me num centro de acolhimento com outros homens. Nem todos vêm da nossa terra, nem todos fugiram por causa de bombardeamentos – ou dos festivais periódicos de matança que por cá chamam, muito solenes, de assassinatos em massa. Alguns fugiram apenas por perseguição política, por medo da polícia do estado – curioso como se tornam pequenas as desgraças maiores do resto do mundo, nesta hierarquia de tragédias. Como te disse, estou na Terra Média.
O sítio não é mau. É limpo, anda-se bem na rua, compra-se de tudo, não falta quase nada, não há racionamento nem hora de recolha obrigatória. Passeio sozinho à noite, e quase não olho por cima do ombro. Partilho o quarto com um homem. Há semanas que não dorme. Fica a maior parte da noite sentado a olhar para a rua, acha que não o ouço. Mal se apercebe que não está em silêncio. Pronuncia baixinho as tempestades de um tumulto interior, com fúria, contra uma multidão de gente espalhada por este continente todo.
Encontrei-o há umas noites de dentes cerrados, a cuspir nomes que nos custariam uma sova se os disséssemos nós, lá em casa. O coitado estava sentado com o computador à frente, virado para a janela do quarto. Estava no sitede um jornal qualquer, a traduzir alguma coisa, mas eram notícias. Resvalou para a caixa dos comentários. Pobre alma. Acho que o velho não aguenta muito mais isto tudo. Deixou a lucidez ser tingida por esse esgoto, e agora não vê mais nada senão desdém. O orgulho empolou-se com as agressões preguiçosas, com as pequenas malvadezes dos simples, frágeis vitórias da cobardia (tenho de escolher uma destas metáforas, não me consigo livrar de nenhuma, A.!) e agora exacerba-se em frente a tudo – até a generosidade sincera de muita desta gente é um ataque a uma dignidade que parecem querer levar-lhe, com tudo o resto que lhe foi tomado à força. Ainda lhe tentei explicar a necrofilia do mundo online, poupar-lhe um pouco da paz que lhe resta – mas sabes como sou, gaguejei meia dúzia de coisas desconexas e fiz-lhe um chá.
Ele lá fala, pelo menos….não me chateia ouvir, eu estou bem, e de mais a mais, para quem quer escrever a matéria fedorenta da vida, não há como ignorar estas oportunidades (aqui talvez tenham razão na mandíbula de ténia, que posso fazer). Nos dias menos dramáticos fala-me dos passeios pelas montanhas com a família, dos aniversários, da caixa de doces que levava ao almoço de sábado, para o filhos. A maior parte das vezes fala-me do resto. Diz-me que lhe custou menos atravessar a Turquia a pé, aguentar duas noites no barco inundado, do que passar diariamente por esta tensão a fogo brando. Chamou-lhe “a tirania da gratidão sem direito a protesto”, porque já é de uma valente misericórdia deixarem-nos sequer pôr aqui os pés. Como se “todo o Homem não tivesse o direito a novo chão onde fundear a vida”. O pai escreveu uma coisa qualquer sobre isto, lembras-te? Sempre que falávamos da faixa de Gaza e daquela trapalhada de posse de terra? Era uma tese sobre a entidade fictícia de propriedade territorial, dizia qualquer coisa acerca da “força tectónica da ilusão do direito sobre uma terra que foi, em última instância, sempre habitada à custa de se correr com quem lá vivia antes. A ilusão de que brotamos do chão como divindades ungidas, e de que a identidade é devassada partilhando esse chão com quem brotou noutro sítio qualquer.”
Devias ter ouvido a conversa dele, num inglês terrível, a gritar com a funcionária do SEF ao telefone…acho que ela nem dizia nada, deixou-o apenas abrir as comportas à alma (ou “disse aquilo como o ventre vermelho da vaca ao parir um argumento”, que achas de pôr aqui a metáfora?). Coitada, sem culpa nenhuma foi a face e os ouvidos dessa multidão que não o deixa chegar jamais (estou a repetir-me, isto não é fácil). Levou até com as reclamações contra os terroristas-de-caixa-de-comentários – teve uma paciência de santa… Constrangi-me, como é óbvio, detesto esses arraiais de confronto. Mas o homem não está bem, há que desculpar. Fui para a sala comum com o livro de direito penal, mas ele gritava como se, de uma vez só, escoasse meses de angústia. Dizia que não estava aqui para viver à custa de ninguém. Acaso não tinha trabalhado como um jumento, mais do que o corpo deixava, acaso não tinha dado à mulher e cinco filhos uma casa e conforto, acaso não ajudara os pais que nunca tinham vivido sob um tecto que fosse deles? Não fora toda a vida um escravo dos outros para agora lhe dizerem que “quer é mama”, que vem viver à custa seja de quem for. Acaso acham que queria sair da terra onde ficou tudo o que conhecia? Viver do favor de estranhos num deserto de alheamento (isto sou eu a embelezar, sim…)? Atravessar a Europa sem comida, sem roupa, sem dignidade, como um vagabundo, menos do que um cão? Era um fantasma aqui e só não morria por causa do filho…era um fantasma, não lhe deixaram mais nada, era um fantasma…ele não está bem Ahmad, eu digo-te.
Tentei imaginar essa forma de desterro. Como se pode estar num sítio mas estar-se vazio da vida e não ter como a encher de novo. Acho que tem tudo a ver com a memória. Escrevi sobre isso (um pouco pomposo, mas quase soa a uma tese digna de Sartre – ri-te lá…)
“A grande riqueza e a grande fragilidade humana residem na irredutibilidade da memória. Derivam, ambas as faces de luz e de sombra da vida, da intensidade excessiva com que foi modulada a memória, no humano. Fonte de glória e de pesadelo. Um pouco mais e talvez se avançasse vertiginosamente na construção do humano civilizado; um pouco menos e talvez pudéssemos recomeçar incessantemente, sem as bolas de ferro que nos prendem às expectativas de progressão, à necessidade de coerência – e nos libertássemos do constrangimento de irmos mudando sem subtileza.
A memória arrasta pelos céus e pelos lameiros os mesmos elementos da alma. Perante a dissolução de todas as referências da vida, a memória persiste. Como uma caixa de Pandora, a memória fica ainda dentro da caixa, quando tudo o resto é vazio. E depois, numa cruel ironia, como uma pestilência, enche a caixa de fantasmas, quando já está vazia de quem eles foram.”
Tem um ou outro mérito de forma Ahmad, não sejas mauzinho. Voltando ao homem, e aplicando os corolários, eis o meu raciocínio:
Ele tem quarto, tem cama, tem o revoltante subsídio aos preguiçosos. Mas não foi salvo. Está cá, tem a amplitude destas praças seguras em volta, e ainda assim não se dissolve o desalento. É essa a métrica de cada dia. É um fantasma. É como aqueles doentes lúcidos, fechados num corpo onde nem um músculo se mexe. Vive para experimentar o exílio de si mesmo. Para ser diariamente possuído pela presença demoníaca de uma memória que não lhe traz nada, apenas expõe a incapacidade de regresso. Tudo está morto. Os amores, os enredos de mercearia, os quadros na parede, os seus livros na estante, na sua rua, lá longe.
Por menos que os outros tenham, têm ao menos a vida acessível a eles mesmos. Nos desalentos, nas dores e nos obstáculos, têm ainda a presença do seu eu futuro na continuação desse incessante eu passado. Habitam-se ainda. Continuam-se. Podem ir colocando mais um ou outro tijolo sobre uma vida que não ruiu. Ele dorme sob um teto numa vida caída por terra. Enjaulado pelas grades da memória que apenas o deixam contemplar as coisas que alguém teve um dia, lá longe, mas que não é ele…
É-me difícil empatizar. A minha vinda foi quase um intercâmbio de Verão, foi aceitar a bolsa antes que nos chegassem a casa os morteiros e apanhar um avião. Não tive de ver o que vivi ser rompido de repente, com a foice de um pesadelo. Se ouvisses as coisas que lhe vou apanhando de vez em quando…os filhos mais novos assassinados por três balas na cabeça, o mais velho perdido, provavelmente morto também, depois de se juntar ao exército. A mulher fugiu com ele, já vazia. Na costa da Turquia, para que os deixassem apanhar o barco, deixou-se violar. Caiu depois do barco, não chegou cá. Ele não está bem, A. ele não está bem… como poderia?
Eu vou escrevendo. Não sei bem o que dizer, ao menos roubo ao vazio dele um pouco de Literatura (permite-me alguma seriedade, não sejas otário). Sinto falta da Sarah. Espero que tenha chegado bem à casa dos tios, na Alemanha. Tenta saber alguma coisa dela, por favor.
Ainda chove, lá fora. Agora já não é um parto, é um lamento baixinho de carpideiras. As metáforas mudam a percepção das coisas, talvez mudem também as coisas em si. “Parto” ou “choro”, é decadentista de qualquer forma, acho que estou no bom caminho. Quanto a ti, vê se fazes mais do que trabalhar a musculatura, seu brutamontes. Dá notícias, eu vou escrevendo – sem ler alto a ninguém, claro está. Permito-te o gancho de braços que tanta falta te deve fazer, só desta vez. Até breve, A.
27 de Novembro de 2017, centro psiquiátrico Júlio de Matos
Anexo ao registo do doente as entradas recentes do seu diário. Desde que sugeri que escrevesse, completou dois volumes. A maioria dos textos são pequenas variações da mesma carta. Tem um discurso extremamente estruturado e literário. Como na maioria das outras entradas, dirige-se ao irmão. Refere-se quase sempre ao pai como o seu companheiro de quarto. É “o homem”, sem mais especificações. Este quadro de defesa psíquica parece ter sido desencadeado pela chegada do pai, três meses depois de o doente se estabelecer em Portugal com uma bolsa de estudo para refugiados. Segundo o pai, só depois de se reencontrar com o filho é que este soube da morte dos irmãos mais novos e do desaparecimento do irmão mais velho. Há poucas referências à mãe. Viveram os dois num centro de acolhimento, mas com a deterioração do estado mental do doente, este foi internado. O pai veio visitá-lo no sábado, o doente manteve-se em silêncio. Trouxe-lhe uma caixa de doces. Hoje encontram-na no lixo. Tentarei abordar o tema na próxima sessão.
De fato, o melhor texto que vi sobre esse tema até o momento. Meus parabéns! O conteúdo saiu ótimo. Depois visite o meu blog. Abraço!