
Por mim anda-me, e eu deixo
A rua breve de Lisboa
Recomeça-me, confia-me
Três mil anos de vícios
Faluas, naus, terreiros
Velas intactas de fenícios
Fogueiras, breus, ofícios
Sedimentos de gente
Sobrepostos, empilhados
Sobre os olhos abertos
À irreal vida de um lugar
É na ideia de si e lá
Que a lucidez arrefece
E o miradouro se converte
No marulho dos segredos
Ainda não pronunciados
Por preguiça
Ou atraso
Estando o jardim já em mim
Preparado
À memória rápida de um sonho
Tangido espaço só de Tempo
Persistência em luz do vento
Soprando na face de Deus
Na indiferença do Infante
E renovado no semblante
Do Homem que de novo tenta
O cais da cidade-mundo
À sombra de cada caminho
Há sempre um fruto escondido
Pronto a ser colhido
Estendendo o medo à escuridão
Em cada escada a permissão
De uma outra, breve vida
De um desalento indolor
Escolhido só porque a dor
Fica bem com sardinheiras
Lisboa é o lugar ausente
Em todos os outros lugares
Na embriaguez, entontecidos
É os arrependimentos antigos
À luz dos lampiões
Murmurando ao vulto
Ao primórdio oculto
Na solidão de cada um
Que se corrijam ao medo
Palco imerso do enredo
De poder eu, quem sabe,
Viver enfim um amor novo
Se abrir a mão quase vazia
Em cada inesperada colina
Onde um fruto escondido espera
Estendendo o corpo à escuridão
Lisboa é a ausência de luz
Que há em todos os outros lugares
Vagar de todos os outros vagares
Lisboa é nome de regresso
Guardado na vaga promessa
De ser a alguém a minha casa
Lisboa é longe, longe dela
E começa, já ausente
Quando se está quase de chegada.