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Os fins de Ulantis

8 Março, 2018
Alfons Mucha, Slav Epic, Original Homeland.

Sob a abóbada da lua, no fio que escorre da aranha, ao éter se unia a grande sacerdotisa de Hellos. Colunas de adobe, como favos de mel, escorriam a matéria dourada da noite, continuavam – parecia – a pele de bronze que de pé estendia os braços através da escuridão. A meia lua de ouro, com as pontas voltadas para baixo a emular a queda da deusa Abshal, Primeira sacrificada a Telhuros, equilibrava-se sobre a cabeça alongada, como uma amêndoa. Sem ver, mirava o horizonte de areia, o olhar constelado das mil almas que a serviam e à velha crença de serpentes de Ulantis. “Ouvi a velha encarnação dos dilúvios, a Senhora anunciada das Secas que vem repetir a primeira sede! Olhai Eshbat, a Oposta, a Suprema Fecundação do Alheio!” Uma perna flectiu-se ligeiramente, lembrava a chita que se prepara e depois, no ar, agitou-se a intenção dos Ocultos. Pendiam dos braços nus, das pernas quase nuas, pequenos fiapos escuros de linho – azul como a noite, ondeando com os murmúrios ditos por trás da cabeça – sussurrados por coisas mortas, coisas vivas.

 

Entre os canaviais abria-se ao céu o templo, cabeça decepada dos abnegados, comum presença interior de um mesmo divino – templo aberto que era apenas os resquícios falsos de uma ruína de antes, muito antes. Em frente a ela curvavam-se corpos limpos como espigas, escuros e brilhantes como escaravelhos. Saciados, bebiam o vermelho que seguia do altar, espesso através de pequenos carreiros serpenteantes, à sua volta, apressados de retorno, manchados de luar.

 

Na obscuridade a morte e a vida não se distinguiam, e nos corpos que assistiam havia corações que não batem, corações que batem, a mesma coisa para os céus de Ulantis. Erecta e sensual. a sacerdotisa era o braço sobre a noite de todos, a eternidade circular de Eigoshun.

 

Ondeou, e a voz entoou vaticínios

 

“O chacal azul quer um Homem, a serpente de prata quer um Homem.

 

Nas colunas do templo dourado, nas portas da noite sem fim, um Homem apenas deverá ficar como sinal do nosso abandono. Depois, enfim, partiremos.”

 

Agitou-se no chão uma cáspide, subiu-lhe a perna nua.

 

“Segui as ravinas de Hekat, entrai nos rios de Obushun, cavai as minas de Elath. Cumpri a ordem nova e trazei-me, sob os cabelos, a cabeça do Homem já ungido nos lagos paralelos, sem que o saiba”.

 

Foram lestos, os Homens. Nas horas entre os dois globos fendidos correram em busca da vontade do chacal, da vontade da serpente. Não havia senão certeza. A dúvida dos desígnios havia ficada enterrada com Abshal, guardada no vazio a centelha que queima os caminhos de indiferença.

 

Surgiu no céu o desígnio. No risco de um monte onde luz nenhuma tocava, um pária de Telhuros viu a face sem cabelos que se pedia. Buscaram-na.

 

Aonde caíram, uma única vez, os deuses, voltaram. O céu continuava a ser o teto comum entre favos de mel, no templo dourado. Cumpriu-se o pedido. Decepou-se sobre o corpo a cabeça. Os regatos de sangue engrossaram, sem que se bebesse, sem que se manchasse de luar. No altar, ainda intacto, com as pontas voltadas para baixo, a meia lua de ouro retornava a dádiva, ainda coroando a cabeça decepada da grande sacerdotisa de Hellos. Chacal e serpente tinham a sua sede morta. A voz, pela face de amêndoa, perdida também. Sem caminhos partiram. Uma última vez, da noite nasceu a ruína e na sua antecâmara, o mundo perdeu-se, em absoluto silêncio de bronze.

 

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