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Solidão

14 Novembro, 2019
Automat, Edward Hopper, 1927.

 

 

A solidão não é vazio, é cegueira.

Em frente a Tudo.

Na sua forma ruidosa – a dos poetas líricos e das melancolias de fim-de-tarde – a solidão é uma agressão à epiderme, expressa-se como uma agudeza de dolência. É um subproduto imediato da ausência – seja pela ausência do Outro, ou pela ideia de que estamos ausentes na narrativa de alguém, particularmente quando eles estão presentes em cada verso da nossa. Mas há uma solidão mais subtil, mais terrível. Um ruído de fundo das Horas, crescente, uma maré que não pára nunca de subir, pronta para nos submergir, lentamente, cada dia um pouco mais.

 

Não pretendo tratar como menor essa solidão aguda, a desolação que há na dúvida – ou mais ainda na certeza – de que podemos não ser, para ninguém, a única água que os sacia.

Confronto, porém, um terror ainda maior ao reconhecer o fundo de solidão que há em cada pensamento que penso, em cada gesto que principio, consciente da minha distância a tudo e a todos. Recusamos reconhecer esse vórtice por intuirmos a sua capacidade de nos aniquilar. Enchemos os dias de ruído, distraímos a sensibilidade com qualquer que seja  o artifício mais próximo – a janela, a televisão, o telemóvel, as montras, uma chávena de café num lugar de passagem, numa rua cheia, cheia de gente, quaisquer braços que nos estendam, sejam ou para nos abraçar, um trabalho que se repete, que se repete sem gosto, que se repete, o pouco tempo depois dele, o cansaço, o acordar e fazer tudo de novo, sempre em movimento, em perpétuo e extenuante movimento, sem que nenhum silêncio se interponha, a questionar o que queremos, o que sentimos só connosco, o que somos.

 

 

Entretenimento, e morte ao tempo morto – a solução moderna para não submergir no desespero. A solução que, precisamente, nos torna susceptíveis ao desespero. Como em qualquer fobia – neste caso a fobia de existir – não há nada mais eficaz que aprender a tolerar o agente do medo, e não “evitar o agente medo”. O agente acabará por aparecer – existir, estar em silêncio, imóvel – acabará por aparecer.

Há que prestar a devida atenção a esse abismo, a essa outra doença, carregada às costas da consciência. A solidão hereditária. Uma peste vitalícia. É ela quem vai debicando a carne da individualidade, dia-a-dia, até sermos um fantasma cínico e desiludido, incapaz de definir um sentido para existir, de tolerar a ausência dele, forçando-nos a preencher o espaço em si mesmo com qualquer coisa, qualquer coisa, por mais que não seja nada.

Não há coisa alguma mais solitária que ser. Ser é uma unidade intocável, incomunicável. Sermos é a nossa afirmação de isolamento, porque nada nos é senão nós. Nada nos sente, senão nós. Nada pode interpor-se entre nós e o abismo com tudo o resto que está por fora, o tempo todo. Excepto talvez sabê-lo e, acredito, o Conhecimento.

 

 

Regressemos ao corolário. A solidão não é vazio, é cegueira.

 

O que há no Conhecimento (e nos seu veículo, a Linguagem) que atrase o movimento dessa maré crescente? Poderá a compreensão – ou busca de compreensão – do mundo exterior ser um bálsamo para essa doença? Que uma metáfora nos auxilie a entendê-lo  (que talvez só os abraços e as metáforas possam atravessar os nossos abismos):

 

 

Todo o ouro que já escavámos, todo o ouro ainda oculto no chão, não é fruto das entranhas da Terra, é cinza dos incêndios do céu. Todo o ouro nos pulsos de crianças, nos peitos de noivas prometidas, nasceu longe, mais longe que memórias da infância – no negro, no desolado e inconcebível frio do Espaço. No céu primordial, morrendo, uma estrela incendiou-se – e pelo negro vazio em volta dissipou-se a cinza, espalhando-se em nuvens; dessa nuvem a justa parte dourada juntou-se, coagulou em gomos, como chuva, e rodopiando em círculos descendentes veio colidir com a rocha e o ferro – e por fim, esquecendo a frieza do Espaço, juntou-se à carne imanente da Terra. Aquela que pisamos. Como seres quase sempre – porque queremos – exclusivamente locais. No círculo estreito da nossa vida, da rua que descemos contando as Horas até ser noite, não pensamos na esfera imensa acima de tudo isso. Não pensamos na moldura infinita da nossa biografia. Mesmo carregando nos braços jóias vindas do infinito, e sendo irmãos distantes de tudo o que é nomeado, sentimo-nos tão pequenos quanto maior é a nossa cegueira.  

 

 

O que importa na metáfora – o que importa no ouro – é o que substitui o ouro. É o enredo que se lê para lá da contracapa, para lá dos brincos, dos diademas – e a relação que ele estabelece com a nossa própria identidade. O eu intocável é, quase sempre, parte de uma, de milhares de histórias ao mesmo tempo. Mas o eu não vê o enredo, porque não sabe – ou não procura – como ler o mundo.

 

Conhecer, explorar, é relacionarmo-nos, a níveis de intimidade anteriormente inacessíveis, com qualquer outra coisa existente. Ironicamente, a maleita da consciência trouxe consigo a própria cura: a alquimia da linguagem. Antes do nome havia apenas o que está fora de nós – tudo era caos indistinto. Demos nomes ao mundo – flor, água, céu – e com cada nome, pudemos trazer cada parte do que existe – da mais vasta à mais ínfima – para dentro de nós. Pudemos pensá-la a qualquer instante, contemplar esse fragmento de cosmos, olhá-lo de todos os ângulos. E na infinitude de coisas uma infinitude de nomes. E na infinitude de nomes, de enredos que nos incluem, uma promessa de que jamais haverá um instante de solidão. Se ao menos tentássemos nomear mais, pensar mais o mundo, e todo ele, infinito, pudesse viver dentro de nós, e fora de nós, connosco…

O pensamento é tão vasto quanto as palavras que conhecemos e quanto o cuidado com que as combinamos. Quão maravilhoso imaginar um pensamento tão vasto quanto as coisas que podem caber nele, quão próximos dos outros e das coisas poderemos ficar, quando as pudermos pensar convenientemente.

 

Por isso proponho: empenhemo-nos na solidão. Vejamo-la como uma sala bem iluminada em frente ao rio e levemos lá para dentro todos os livros do cosmos, todos os livros que temos em nós. E assim, imersos ainda nessa Solidão indelével, aprenderemos a nossa irmandade com tudo. A nossa intimidade com tudo. Na confusão de uma praça da cidade, olhando uma coluna decorada, veremos ao nosso lado as antigas cidades gregas, gravando na pedra a herança que nos concedem, falando-nos através dos séculos na superfície do mármore que deciframos. Numa tarde de Inverno, junto ao Cais do Sodré, a água do Tejo pode levar-nos à foz do Zaire, às naus imponentes da batalha de Diu, à própria irmandade da água doce com a fluidez do nosso sangue, intercâmbio líquido de identidades, de coisas que se penetram e se trocam, num diálogo incessante de pertença; em qualquer recanto iluminado, bordando a luz, azafamados, fotões em ondas breves, vêm tocar-nos a retina; no metal da colher do café, da chave de casa, do carro, entramos nas minas impuras onde os nossos irmãos esventraram a terra; nos olhos quietos à nossa frente, que já nos olham talvez sem espanto,  reconhecemos a mesma alquimia de impulsos, levando-nos, em vielas de electrões, para dentro da sua mente, para o seu íntimo derradeiro.  Somos tudo, somos parte de tudo, e não há parte do mundo que não se revele, se nos permitirmos revelá-lo. Se tolerarmos enfrentar a solidão e entender a linguagem com que nos fala o cosmos.

 

Claro que é majestoso que a ciência nos permita controlar os rios, domar o vento. É um milagre que nasça luz dentro de globos de vidro, dentro de casa, carregando apenas no interruptor – pequenos sóis iluminando a cidade, a cada toque rápido da nossa vontade. O Conhecimento é útil. Utilíssimo. Mas mais além que isso, mais profundamente, domamos a irreparável ausência de sentido de ser e de existir. Mesmo que não haja um fim, há companhia. Do ouro, do Tejo, da luz, da chave, de todos os Homens e seres nomeados. A Ciência, a literatura, a filosofia – toda a cultura – nasce com fluidez, sem motivações profundas, como um gesto inato ao Homem. A Ciência ajuda-nos a antecipar e controlar a nossa fragilidade; a Literatura a conceber mais enredos que os poucos que a cada um nos toca; a Filosofia a pensar sobre tudo isto tentando perceber algo submerso sob todas estas finalidades. Talvez a finalidade de tudo o que sabemos, tudo o que inventamos, seja essa. Desolação conjunta, desolação em companhia. A supremacia sobre o Nada.

 

Ainda se escreve, na contracapa de manuais escolares e em folhetos coloridos de museus que o saber não ocupa lugar. É uma ideia tentadora. Utilitária. Mas na grande viagem de estar cá, na turbulência de o saber, e de persistirmos até ao desaparecimento, o Saber ocupa todos os lugares.

 

Saibamos a solidão, saibamos o mundo. E em frente a nós, haverá sempre um irmão.

 

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