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A Profecia do Beco

4 Janeiro, 2020
DC Super Heroes poster book, 1978.

 

 

Não há talvez um de nós que não tenha sentido, mesmo que por um instante, a surpresa de uma plenitude inesperada. Uma forma muito limpa e imediata de sofrer a saturação da sensibilidade e de algo mais para além dela. Um estado sem voz, sem nome, em que as instruções do resto da vida não entram, onde não se podem fazer os cálculos à utilidade do instante. Nesse momento subvertemos a nossa lealdade aos caminhos. Entramos, talvez por acidente, na dimensão interior onde ocorrem breves mistérios de transcendência. Entramos e fazemo-lo, necessariamente, pela força – a maior das quais será talvez a força da Arte. Seja pela contemplação, seja pelo serviço ao ascendente apolíneo em todos nós, perante a Arte eterizamo-nos, saímos do modo de funcionamento operacional da vida, e contemplamo-nos na aplicação de um milagre oculto, apenas pressentido. Comovemo-nos, olhamos sem preparação para a beleza gerada, e para a origem insuspeita da mesma beleza.

 

Mas há lugares que não podemos habitar. Há espaços em que a luz é tão forte e o ar tão carregado de suspensões de infinito, que o espírito humano se consumiria se lá permanecesse mais que uns instantes. Mais que temer esses espaços, especializámo-nos em não os reconhecer. Conseguimos gastar os passos de uma vida inteira sem sequer olhar a porta informe que os revela. Preferimos os passeios claros ao beco de onde chegam esgares que aterrorizam. Repetimos diariamente os corredores apressados, onde todas as lajes estão iluminadas, cada desvio sinalizado com a perfeita expectativa do lugar aonde conduzem. Por fora e por dentro de nós, a cada dia, caminhos foram sendo revelados – por nações, por heranças, por crenças que se imprimem na nossa vida interior, depois de nos emprestaram o plano que delineamos a papel vegetal. E a cada novo piso sancionado pelo mundo, a cada nova rota de alheamento (não tenho tempo, não tenho tempo – mais dois dias para o ordenado – para quando o segundo filho? – vá, um dia lá iremos – tem que ser, tem que ser…) deixamos essa porta informe cada vez mais distante. Com a mestria crescente dos hábitos, defendemo-nos dos portais que não tenham indicações que bastem para se saber onde chegaremos. É talvez uma das grandes tragédias – de expressão individual – do nosso sucesso como sociedade. É essa a grande ansiedade comum – a lealdade rigorosa ao caminho traçado; a intolerância aos desvios – a descrença na evidência de que são também caminhos; a negligência para com a nossa comunhão com o divino – ou o transcendente, ou o alienígena, ou o que quer que se chame à suspensão, em nós, do jogo utilitário do mundo. Soa a esoterismo auto-laudatório, mas é verdade, é verdade – há pistas por todo o lado. Sócrates chamou-lhe daemon, Llorca chamou-lhe duende – seja como for um ser que coabita com a forma mais superficial da consciência. O ser oculto que tolera o ar carregado, a luz fulminante de um espaço de além-mundo, que fica por dentro. A porção de nós que poderia levar-nos a algo mais do que à satisfação, no destino, de não se ter pisado os limites da estrada para lá chegar.

 

Uma das formas mais curiosas como essa ideia se expressou na actualidade é a cultura dos super-heróis – os herdeiros contemporâneos dos messias, dos santos, dos orixás, dos deuses. O fascínio que os superpoderes exercem sobre nós não parte só de uma maior capacidade de se executar O Jogo com uma vantagem prática sobre os outros. Um nível de ansiedade mais subtil e profundo responde aos talentos extra-ordinários desses heróis. É a hipótese silenciada de haver em nós uma centelha de divindade. De haver o gérmen de algo mais que nos liberte da imperiosa ilusão do Jogo. É o daemon que se agita, entorpecido, quando vemos o voo da capa no céu. Talvez a associação entre banda desenhada e a chave da liberdade interior seja um pouco dúbia – mas experimente-se. Em evasões que devem ser prioridade e não capricho, ignore-se a urgência dos caminhos iluminados – são apenas uma das alternativas. Criar a Arte, fruir da Arte, alimentar o duende. De passagem, apressado, distingo algo nos esgares que provêm dos becos, e julgo ser a proposta de que é esse um dos caminhos para transcendência (e não para uma existência divina, que é ainda mais determinada que a humana). Permitir as breves evasões para uma grandeza possível – sempre possível. Há lugares que não podemos habitar, nem se deseja. Mas seria uma tragédia se os mantivéssemos abandonados.

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  1. Leonel, hoje, a antiga professora, já muito idosa, dá graças por ter sabido ler o mundo interior do jovem que iluminava as aulas.
    Havia essa necessidade de transcendência e de ” grandeza possível”. E havia outros alunos que comungavam dessa utopia.. E sempre houve outros. Não muitos. Sem vocês, ensinar seria uma tragédia.

    Beijo

    1. Palavras sempre generosas de uma mentora que tanto investiu para fazer florir ocultos prados em nós. Obrigado, sempre. Um beijo

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