
A primeira coisa que Aurélio sentiu, ao borrar sombras em mais um retrato a lápis do Don Draper, foi uma pressão no ouvido direito. No dia seguinte, aconteceu o mesmo com o ouvido esquerdo, e Aurélio reconheceu que estava surdo. Começou por ser apenas um abafar das coisas habituais, como se o aço da sua guitarra tinisse noutra sala, ou num sonho, ou como se alguém tivesse fechado uma janela grossa sobre o ruído da cidade. Foi ao hospital, fizeram-lhe uma otoscopia, e uma audiometria, e uma timpanometria, e escolheram uma certa ressonância para explorar os labirintos exteriores do cérebro, e filtraram-lhe o sangue com crivos, como as peneiras dos prospectores de ouro, tudo para ver se havia algum resíduo de doença – e sem encontrarem coisa alguma de errado, deram-lhe poderosos compostos, meteram-no numa câmara de metal fechada, como um submarino, para tentar levar o oxigénio que corrói e retempera aos lugares famintos do corpo, e enfiaram-lhe arames electrificados pelos ouvidos, para estimular o nervo auditivo ao longo do eixo duro da cóclea – mas por mais que o sondassem, nada lhe trazia de volta os sons que perdia. Dia a dia, a cidade e os ruídos ficavam cada vez mais longe, a voz dos outros, que antigamente era feita de distintos clarões pulsáteis, passou a ser uma ténue vibração, intuída na pele, até se tornar uma ausência completa. Passou um ano. Aurélio deixou de tocar guitarra, o que fazia de vez em quando, com planos de se tornar um cantautor assim que a voz aclarasse; deixou de ir a concertos, o que fazia uma ou duas vezes por ano, quando alguém comprava um bilhete a mais e era perto de casa; e deixou de sair à sexta-feira, para não ver passar-lhe ao lado as conversas sobre o metro quadrado, e tardes no Meco, e cervejas artesanais, e fulanos que não se sabe como ganham a vida, e festivais de electrónica, e rendas partilhadas, e pós-graduações interrompidas, e filhos, e óleos para barba, e acabar a sorrir como um cretino, sem conseguir dar resposta a uma pergunta ou a um chiste vulgar. Aurélio foi muito infeliz, e perdeu praticamente tudo o que sempre desejou.
No Verão do ano seguinte, numa tarde, já demasiado tarde para almoço, Aurélio fervia um caril de pacote, descalço sobre a laje despolida do chão, só com uns calções postos, e a pele enlameada por uma película de suor inerte. Foi com uma colher à panela, levou um pouco de caldo amarelo à boca e queimou-se na língua. O tempero soube-lhe a aço. Deitou o caril num prato e juntou-lhe arroz de microondas. Sentou-se numa mesinha voltada para a janela, de onde se via um jacarandá e uma parede de cimento. Pôs a correr, legendado em inglês, um episódio de Sons of Anarchy. Cavou a primeira garfada. Levou-a à boca. Sentiu a pasta escorregar para a lâmina carnuda da língua, espalhar-se pelos sulcos em volta, comprimir-se contra o tecto duro e liso, mas, em vez do que era habitual, a comida, na boca, pareceu-lhe uma onda do mar sobre a pele – só forma, calor, textura, volume. Experimentou canela, sal, pimenta e limão, deixou cair duas gotas de lixívia na ponta da língua, fumou cigarros, amassou uma pastilha elástica Gorila, abriu pacotinhos de molho de soja de uma taça cheia de pacotinhos desirmanados, raspou nas papilas uma migalha de ferrugem que arrancou da correia da bicicleta, mas tudo era onda – só forma, só calor, só textura, só volume. Depois de notar um veio de sangue a gotejar sobre o peito nu, Aurélio parou, e reconheceu que tinha perdido o paladar. No hospital, varreram-lhe as mucosas com luzes, palparam-lhe o pescoço e a cara, mediram-lhe a produção de saliva, a drenagem de lágrima, escolheram outras ressonâncias, retalharam-lhe a cabeça em fatias com uma tomografia e, sem descobrirem coisa alguma de errado, deram-lhe os compostos poderosos, e os antibióticos abrangentes, e as vitaminas que vivificam, e tentaram reeducar-lhe as papilas e desobstruir as rotas nervosas, mas nada lhe trouxe de volta os sabores que tinham sido levados. Passou um ano. Aurélio deixou de ver programas de culinária com cronómetros e com estágios em hotéis, e deixou de seguir cozinheiros de Instagram, e deixou de ir experimentar o Nordés com maçã verde, e de pedir o Gin Mare com cardamomo, e a carne maturada dos restaurantes do Cais, e a cerveja artesanal de Santos, e o café filtrado da Etiópia, torrado na própria coffe house da Avenida – e a comida, para ele, passou a ser um carregamento de pastas e cubos que se entrechocavam na boca, roçando tristemente uns nos outros, como grumos de cimento dentro de uma esfera giratória. Aurélio foi muito infeliz, e teve de abdicar da ansiedade de experimentar tantas coisas novas, que, estava certo, lhe fariam muita falta.
No mesmo Verão, na tarde do caril, Aurélio notou que também os cheiros empalideciam. Já sabia da intimidade entre as duas portas, olfacto e paladar, como duas árvores de fruto alimentadas pelo mesmo lençol de água subterrâneo, aproximados na sua vinculação ao mundo, interpretando de forma ligeiramente diferente a mesma água – maçãs e pêras, vermelho e amarelo, carne e areia. Na mesma tarde do caril, também as pequenas chaves voláteis dos aromas deixaram de abrir portas dentro dele – o tabaco deixou de ser quente e cómodo; o vapor da casa de banho deixou de ser cáustico e de impor uma certa asfixia de bolor suspenso; a boca mecânica do caixote do lixo deixou de exalar a acidez acastanhada de apodrecimento e fermentação; e o estrugido, que já não rugia, deixou de preencher o ar com o poderoso representante da alquimia do fogo. O ar vedou o seu leito, deixou de ser navegável, e enchia-lhe os pulmões de silêncio, como um fole mecânico e desinspirado. Ficou triste, muito triste, sem saber porquê, sem entender que a alegria é um resquício de inconsciência, antigo, a que só se chega por certas portas, escondidas nas heranças de água que há dentro de nós.
Não demorou muito até Aurélio perder o emprego que teve a sorte de arranjar, a bater código no computador. Foi um despedimento justo, porque ele não trabalhava bem. A tristeza não se dava com prazos, nem com taxas de renovação, nem com avaliações de desempenho, nem com índices de produtividade, ou com reuniões de equipa para discutir reuniões de equipa. Deixou o apartamento, partilhado com uma amiga, designer gráfica, e instrutora de ioga, e mental coach, e voltou para casa dos pais, um pouco mais a Ocidente, longe o suficiente para não se ouvir, cheirar e provar as coisas perdidas da cidade grande. Não se surpreendeu quando uma névoa amarelada, como a claridade impérvia das opalas, lhe começou a ocupar a visão. Não correu para o hospital. Sentou-se no cadeirão da sala, em frente à televisão, e acompanhou o esbatimento lento das figuras. Era como tornar-se espectador do intelecto dos primeiros abstracionistas, cegando como se vivesse numa imersão visionária de Cezánne, de Kandinsky, de Chagall. Foi levado ao hospital pelos pais, porque tropeçava nas coisas, e ao fim de algum tempo não conseguia distinguir o prato, nem talheres, e abriu um lábio com os dentes do garfo. Resistiu, protestou, e só com dificuldade lhe varreram de luz a retina, e lhe passaram máquinas sobre a córnea, e lhe ampliaram a íris, e voltaram a mete-lo na forma apertada da ressonância – não a via, mas sentia a compressão do ar sobre a pele, como sentiria uma águia que deixa a imensidão infinita do céu para atravessar um desfiladeiro. Tentaram todas as coisas costumadas, deram-lhe pelas veias e pela boca os compostos que restabelecem, e ele deixou-se manipular, sabendo que era por eles e pela consciência deles que o permitia, sem esperança alguma de que resultasse. Sabia que já não poderia cumprir os desejos de ver a Grande Arte que ainda não tinha visto, nem as paisagens que escorriam no telemóvel, nem a agudeza dos filmes antigos, nem as tais cores do por do sol de África, nem as alucinações da LSD, nem a luz pulsátil do Lux, ou os luares alienígenas que se prometiam nas noites de lua amarela e de lua de sangue e de lua morango.
Não ficou mais infeliz, mas ficou desesperado, de vez em quando. Queria matar-se, mas não tinha energia. Deixava-se levar, sentia as mãos da mãe, a esponja, os lençóis, e o dia dele era uma sucessão de pesos e texturas, e constrições, e por vezes alguma paz, que devia ser o exterior, o vento no corpo todo, na praia, ao pé de casa.
Num dia quente de Verão – ainda tinha memória contida nos corpúsculos da pele, e conseguia perceber a passagem das estações e outras coisas de inteligência, como a febre e a necessidade de uma janela aberta – Aurélio sentiu que muitas mãos lhe tocaram. Sentiu o corpo ser suspenso pelos braços, pelos cotovelos, pelas ancas, pelos tornozelos, e foi sendo baloiçado, como um ariete que se atira contra a porta de um castelo. De cada vez que o corpo avançava, sentia o cristal da água do mar quebrar-se sobre a sua pele, numa infinidade de partículas, cada uma em diálogo com o pêlo, com o corpúsculo, com as pontas abertas dos nervos, pulsando, na ânsia de levar alguma mensagem. O corpo, dobrado e mole, sem resistir, avançava, e recuava, e a água do mar ia-lhe cobrindo os pés, as virilhas, chegava-lhe ao pescoço, e a cabeça inclinava-se para trás para proteger os tubos do fole de ar. Ele devia estar a sorrir e devia estar a mostrar alguma alegria – já não falava, tinha desistido de chocar com as expectativas alheias – porque o mantiveram muito tempo no mergulho. Até que, no movimento ininterrupto do ariete, o quebrar dos cristais também mudou. De cada vez que era lançado sobre uma onda, a frieza da água atenuava-se um pouco mais, a clareza do uivo que lhe percorria a pele baixava um pouco mais o volume, e num gracioso apagamento, deixou de sentir, por completo, o mar a cobri-lo. Julgou que o tinham levado para a areia, mas não era só a água que se despedia da sua participação no mundo – não sentia também as outras mãos sobre os pulsos, nem sobre os tornozelos, nem a suportar as ancas, e a tarde, que tinha sido quente e seca, já não era coisa nenhuma. Já não havia brisa, já não havia correntezas, tudo estava quieto, mesmo que lá fora, tudo se movesse. A partir daquela tarde, todas as coisas eram invisíveis, inodoras, insípidas, inaudíveis, impalpáveis; o exterior já não tinham outra forma de se mostrar, e no romper da última corda, Aurélio foi afastado para sempre do mundo.
Porém, contra todo o entendimento, Aurélio ainda era. Vivia – numa suspensão, que era ele, e era algo mais. Habitava um estado que não era escuridão, mas algo que não se podia sequer questionar. Ele “era” ali, apesar de tudo, mesmo que o corpo pudesse estar em qualquer outro lugar: dobrado sobre si mesmo, deitado, exposto à chuva ou à violência dos punhos alheios – não teria como sabe-lo, e acima de tudo (descobriu, depois de um tempo indefinido), não queria sabe-lo. Foi então que toda a ansiedade cessou, todo o medo cessou, e o exterior se tornou o interior, e esse interior se tornou um ressoar que não era som, mas era uma completude que nunca tivera.
Num dia-noite-alvorada-crepúsculo, naquele breu totipotente, achou que talvez nunca morresse. Se a morte chegasse, não haveria coisa alguma a anunciá-la. Nenhum apagamento, nenhuma aparição. Cada coisa estava ausente, e por isso mesmo, Tudo estava presente. Ele tinha já entrado pela morte dentro, como quem entra devagar na água, não sentindo qualquer temor, qualquer desespero de um corpo incapaz de tolerar as suas próprias armadilhas. Por vezes sonhava, ou julgava que sonhava. Entrava num estado em que via, novamente – ou pelo menos lhe Aparecia, sobre aquela massa espessa, uma experiência que se aproximava da imagem: eram as essências, voltando dos primórdios, ou a matéria amalgamada da memória, em todas as suas facetas. Passavam em torno dele, dentro dele, por toda a parte, jacarandás, e florestas do Bornéu, máscaras de ébano e os dentes muito brancos de alguém que amou. Depois, também isso desapareceu. Chegara o tempo da absoluta limpeza. Durante algum tempo, não havia coisa alguma. Depois, notou que algo persistia nos interstícios. Eram cortantes e inquestionáveis – eram palavras: algumas palavras, a encher a sua gloriosa Desolação, palavras que compunham a primeira estrofe de um poema, o único que tinha decorado na vida. Quando as descobriu, passou a recitá-las, por horas a fio, ou anos a fio
“No divino impudor da mocidade/Nesse êxtase pagão que vence a sorte/Num frémito vibrante de ansiedade/Dou-te o meu corpo, prometido à morte.”
As palavras eram uma completa presença, versicolores, retumbantes como tambores, iam para lá de qualquer coisa viva ou morta, para lá de qualquer tristeza, alegria ou medo. Primeiro, havia só uma palavra (“ . divino . ”). Depois, a palavra unia-se à seguinte, e era algo novo (“ . divino . impudor . “). Prosseguiam juntas, entreteciam-se num verso, unificavam-se na estrofe, e as metamorfoses não cessavam, na fornalha furiosa do poema. Com quatro versos, com vinte e cinco palavras que se combinavam, percorreu todos os caminhos, sem tristeza, sem alegria, sem medo, e os caminhos eram todos lisos, e livres de pegadas. Para lá dos caminhos, depois de minutos, ou depois de anos, pela mão das palavras que recitava, Aurélio sentiu-se chegar perto do Centro, o sítio de onde tudo emanava, e para onde tudo era chamado. Aproximava-se (“ . No . divino . impudor . da . mocidade . ”), e sabia que nesse lugar veria o que era Procurado por todos (“ . Nesse . êxtase . pagão . que . vence . a . sorte . ”): o verdadeiro nome do mundo. O seu verdadeiro nome. O não-ouvido, o não-pronunciado, anterior à existência, intacto, no centro do Centro (“. Num . frémito . vibrante . de . ansiedade . ”). Avançava, palavra acima, palavra adentro, e Aurélio chegava perto, – pertíssimo! – do que todos procuravam, e Aurélio já não sentia coisa alguma, e ele já quase não era coisa alguma, e assim, insomne e insensível, subindo pela Palavra, Aurélio atravessava o limiar que nunca nos foi permitido atravessar. Revolteava, revolteava naquela espiral para onde tudo convergia, e Aurélio começava a reconhecer a palavra, sim, ali estava!, a palavra, o seu verdadeiro nome, o verdadeiro nome do mundo!, e era dele, e seria o primeiro, o único, e a busca, a de todos, desde sempre, enfim, terminaria ( “ . Dou-te . o . meu . corpo . prometido . à . Morte . ”). Depois de um último golpe de Espanto, a espiral cessou. Na Ausência, em frente a ele, pôs-se uma imensa palavra de fogo. Ficou tudo quieto. Aurélio ficou suspenso. O Centro ficou oculto. A palavra bradou, e, sem possibilidade de recurso, a palavra de fogo expulsou Aurélio, para sempre. A antecâmara era vedada – aos Homens e aos deuses, demasiado fracos para aguentar o verdadeiro nome. O seu, o do mundo.
A chuva foi a primeira coisa que ouviu. Teve um pouco de tristeza, teve um pouco de alegria e, depois de o corpo lhe acordar por completo, Aurélio apercebeu-se que tinha um pouco de medo.