
“A permissão à decadência foi o recurso à guilhotina. A invenção da distância entre a mão e a vida.”
3:11; 4.
Terceiro tomo: Livro da Espera.
A sustentação das derrocadas
Os processos com que se acendiam, dentro da Morte, as breves manchas da vida, não tinham mudado, nos seus fundamentos, em dez mil anos. As três irmãs estavam ainda na mesma sala quadrada, a sala engastada, como uma jóia, na mais funda camada de terra, onde subsistia a primeira escuridão. A sala era de mármore ebúrneo. Não tinha entrada. Não tinha saída. Perfeitamente selada. A pedra era negra e lisa e tinha pequenos veios leitosos, dentro dos quais parecia escorrer o floema de plantas subterrâneas.
A primeira irmã, à esquerda, tinha um sulco gretado descendo das pálpebras, onde já não passava o sal nem a água, e ela deixava correr, ainda, pela polpa calosa dos dedos, a barba grossa do linho, que domava num fio tosco; a segunda irmã, à direita, de mandíbulas cerradas, com a face angulosa como os esquadros, tinha ainda no corpo os estigmas de uma longa devoção ao seu ofício, as costas curvadas e as pálpebras cerradas em fenda, os olhos baços; a terceira irmã, ao meio, tinha o seu trono mais elevado que o outras duas, um porte régio e nervoso, e acenava com a cabeça, compassadamente, com uma expressão resoluta, permeada de vigilância e temor.
Primeiro Tomo: Livro da Maré Negra
A observação dos ritos e Desaparecimentos
Quando o primeiro terramoto levou, de todas as enseadas, as primeiras tentativas da vida, apareceu, no Centro, uma sala. Ficava por baixo da terra mais antiga, muito abaixo das estacas que sustentavam a superfície. Era uma sala intacta, sem costuras, como o cadáver de um titã enterrado pelas mãos do Pai. Estava totalmente engastada no meio da escuridão, sem uma única frincha que lhe deixasse entrar, de fora, o mundo. Era um cofre. Um posto de comando. Um berço. Guardava e deixava jorrar, como uma enchente, a força acidental que nascera, a força que decorria, sem que nada o esperasse, da primeira interferência da vida. A Morte, sem a educação necessária, jorrava e permeava tudo com o instinto das evidências, com a inocência possível aos poderes infindos. Na sala de onde exsudava e de onde maneava os seus atributos, a Morte era uma coisa solitária, compreendendo, mesmo na sua juventude, que o ressentimento que lhe tinham era a condição necessária à sua existência como derivação omnipotente da impotência da vida.
Nos primeiros dias, a Mãe viu, distintamente. No seu posto de silêncio e vigília, viu o espaço ser ocupado pela maré que nascia, e viu a escuridão do seu manto ser redobrada, e viu que as frágeis criações dos deuses, e eles próprios, deuses imortais, que prestavam atenção apenas aos seus próprios desejos, não poderiam senão ser permitidos pelo oceano opaco da Morte. O orgulho dos deuses, que conjurara acção a partir de inacção, o contacto a partir do isolamento, originara também o fundo sobre o qual tudo isto decorria. Originara a coisa que não desapareceria e que passaria a dominar a visão de tudo o que lhe resistisse.
A Mãe entendeu-a de imediato, como se sempre tivesse faltado aquele oceano para formar o mundo. A Morte tinha os seus próprios códigos, propriedades fundamentais, como têm a luz e a fuga. A Mãe reconheceu que era preciso saber conduzir-se dentro dela. Era preciso a atenção infinita para delimitar os fios que tentavam atravessar o abismo líquido, para aprender a permanecer, a resistir na imensidão desolada, para além de um breve lampejo. Da ponta dos seus dedos negros, a mãe extraiu as três filhas. Vestiu-as com os seus mistérios, olhou-as pela última vez, e, ungindo-as para oficiar o eterno trabalho, fechou-as na sala no Centro da terra.
Nos primeiros tempos, a Morte, ágil como um arminho, corria de colo em colo, afagava as faces das três irmãs, e elas sorriam um pouco, mantendo o olhar atento nas tarefas que lhes cabiam. A sala, aparecida no Centro, ainda tinha espaço -, o único que restava em todo o cosmos. Elas moviam os braços sem esforço, sem a espessura da Ameaça, da Melancolia e da Concessão que circundava todas as outras coisas, as que estavam de fora. A Morte saltava de colo em colo, e deitava a sua cabeça nos seus ombros, e elas continuavam com os olhos nos fios, e elas eram uma só coisa com Ela – uma coisa só, as quatro. A sua união dera-se quando eram muito jovens, e as suas naturezas podiam ainda penetrar umas nas outras até se tornarem indistinguíveis, como tinta num copo de água. Foi essa a obra da Mãe, uma obra boa, mas acima de tudo, repressiva. A obra da Mãe foi dar às três filhas o seu segundo nascimento; à Morte a sua ordenação a sacramento; e às quatro uma ordem com que dignificar a inevitabilidade. Dentro da sala, a Morte repousava da sua infinitude. Não inundava tudo, não – era uma coisa como elas, delimitada, definida, uma figura amiga, que redescobria cada dia a nobreza da sua influência, e reforçava, com as três irmãs, a solenidade dos seus procedimentos.
A primeira irmã pegava no linho luminoso da vida, e com dedos destros, delicados, fiava-o numa tosca fita luminosa que poderia ver as coisas em linha reta, como fazem os homens.
A segunda irmã assistia aos volteios e às hesitações dos homens ao longo do caminho. O homem dançava, e o mundo respondia, e no passo conjunto, ambos iam variando a oscilação do seu movimento. Com uma perfeita sensibilidade musical, a segunda irmã calculava a extensão do salão de baile (dançava-se sempre sem recuos) de acordo com a certeza de se ter, por fim, completado um movimento justo. Então, com um gesto complacente, punha uma marca a tinta no limite final da vida.
A terceira irmã era a insígnia do pacto entre as quatro. A justificação da sua existência. Era dela a última face vista pelos que entravam no oceano apagado da Morte. A Hora final aproximava-se de cada homem, e depois das necessárias contemplações nostálgicas e desesperadas, chegava o último momento. Naquele Desaparecimento, as suas centelhas definiam mais claramente os limites da escuridão em torno deles, e a Morte era-lhes grata, e dava-lhes a honra de serem olhados de frente – os únicos naquele instante, cada um na sua vez, sem serem ignorados, sem terem de partilhar a compaixão fraterna dos olhos violeta com outros moribundos. Os outros aguardariam o que fosse necessário. A vez deles chegaria, e também eles seriam os únicos a ser olhados, até acabar o instante da Concentração Absoluta. Era um desaparecimento em glória, a centelha que os deuses temiam e não entenderiam nunca. O fio era cortado, a luz consumida, como um fruto oferecido, e por fim Desapareciam, de regresso a uma impalpável substância. Cheia da memória do homem que vira, e deixando ficar, sobre as suas costas, para sempre, a impressão da sua luz no Tempo, a terceira irmã abria novamente a tesoura, e era a vez de outro homem, que se juntaria, depois da extrema contemplação, à massa infinita em torno dos planetas. O corpo do homem, porém, permanecia. Um aparato inerte, que deixou subitamente de estar animado, mas que se mantinha ainda cheio da dignidade dos nutrientes. Enquanto os olhos violeta conduziam o Desaparecimento do homem, o corpo do homem era entregue à terra. O ritmo da tesoura era o mesmo ritmo das entranhas que o consumiam. A terra recebia o fruto, e o fruto era por ela desfiado. Longamente, a terra dissolvia-o na matéria escura, e formava o alimento das novas promessas de vida. O composto ia-se adensado, grãos, pedras, minério e era o tributo de um corpo digno, que se imiscuía na solução inerte. O chão era um futuro castanho. E o chão era o ventre nutritivo, à espera de uma oportunidade de vida.
Esta era a maneira das coisas. Nada perturbava o ritmo das três irmãs, nada corrompia os preceitos iniciais. Assim Era; o tempo anterior à criação não Era -, assim julgam sempre as criaturas. As três irmãs não falavam, não trocavam histórias fraternas, mas amavam-se sobre a planície silenciosa da sua devoção aos sacramentos.
Uma vez por ano, no dia do segundo nascimento, as irmãs beneficiavam de uma suspensão breve do tempo. Paravam os trabalhos, sentavam-se à mesa. A mesa era um triângulo, e cada uma tinha a sua aresta, e cada aresta tinha o mesmo comprimento. Olhavam-se as três de frente. Ceavam, bebiam vinho, contavam histórias de homens valentes, e homens tristes, e homens ilegíveis e ficavam encantadas com o som das suas vozes, tão nítidas como as gotas que caem das estalactites, no tecto da Sala, purificadas pela frieza angulosa do submundo. Numa das paredes, brilhando levemente sobre o mármore negro, estavam inscritos os mandamentos da Morte. Estavam presentes desde o terramoto, auto-fundados, auto-explicados. Eram poucos, eram justos e eram indispensáveis à preservação da dignidade, única riqueza comum a tudo o que existia. “Que nunca a mão permita/ distância entre a mão e a vida”, era o mandamento que estava gravado no topo. Bastaria. Era o mais sagrado de entre todos, concentração absoluta da natureza primordial da maré negra. Servia a Revelação, porque mostrava o sítio dela. Garantia que cada criatura era reconhecida. Se escolhermos o instante certo, aquele que olha não pode ser enganado por enredos frágeis, nem pode ser precipitado por concepções preguiçosas. Quem olhar, verá a criatura no momento em que mais a luz se expressa na escuridão – durante o seu Desaparecimento! -, único grande evento da Perturbação, o instante final da sua resistência.
No dia do segundo nascimento, as três irmãs tomavam longamente a refeição, e a refeição nutria, e elas ficavam surpreendidas, e ficavam satisfeitas durante muito tempo. Depois, de joelhos, em frente à parede, as três irmãs recitavam os mandamentos em conjunto, compassadamente, como recitavam os aedos poesia, junto às fogueiras. Como um laço apertado, o primeiro mandamento era repetido três vezes antes de se levantarem e retornarem aos seus lugares. A Morte, devidamente purificada pelos rituais, vinha até elas, uma mulher, agora, bela e nítida como um cristal de gelo. Levantava o braço, e a túnica de linho oscilava, limpa e violeta, e ela punha a mão no ombro de cada uma delas. Era um instante de beleza subterrânea, a união das quatro, dentro da Sala, debaixo da última camada de terra, fechada ao mundo, sem uma frincha por onde o mundo entrasse. Com a observação devotada de todos os ritos, com a litania das orações, dentro delas a determinação reforçava-se, e todas choravam um pouco de alegria.
Salmo das Pequenas Almas
No grande plátano, a folha também resiste. Precário membro, preso ao centro, faz ainda a sua parte. Cada dia, diligente, oh! diluída unidade, diligente por natureza, sem instrução e sem angústia. Sem negar a pequenez, toma o sol e toma a água, e entrega um quinhão de açúcar (é pouco, é dispensável!), à grande árvore sedenta. Tão distante da raiz – é quase céu; tão presa à terra – quase um direito; existe quase-nunca, quase-nada. Atreve-se, porém, à unidade, e o preço é chegar ao fim dos dias. Resta-lhe ainda um acto, o acto d’ela-mesma. Findo o labor de uma vida, quase-vida, quase-nada, a folha liberta-se pelo pedículo, e é uma coisa só, inequívoca. Desprende-se de um dever de carne, lança-se num primeiro voo – breve, assombroso, indefensável, glorioso… é uma coisa, é um instante, e é a possibilidade de voo que há em todos os desabamentos. Una, por fim, a folha solta reconhece -, ó delicada, ó violenta novidade de se ser alguma coisa!…
Segundo Tomo: Livro da Distância
Profanação de um dever de sangue
O primeiro agente da decadência foi o recurso da terceira irmã à guilhotina. Primeiro levantou-se do seu trono. A cabeça voltou-se para cima, para a barra superior da grande moldura de madeira. Puxou a corda. O aço elevou-se quase até ao tecto. Abriu a mão. O triângulo de aço caiu. Cortou-se tão rápido o linho, e numa linha tão limpa…. Tentou pôr dez fios lado a lado. Soltou a corda. Caiu a lâmina. Dez almas numa só estocada. Era preciso, ainda assim, terminar o acto -, juntou os homens que Desapareciam numa antecâmara. Subiu a um púlpito, e eles olharam, os dez, os seus olhos violeta. A última sensação que tiveram foi uma sombra ténue de irrelevância e os dez lampejos formaram uma única mancha que delimitou a escuridão, por um instante.
Voltou à Sala. Subiu o aço. Largou a corda. Mais dez almas, uma ida rápida à antecâmara. Depois tentou cem fios, e funcionou do mesmo modo, e para acolher o excedente de homens, abriu um salão entre planetas onde coubessem e a vissem bem, ao fundo, erguida num palanque. Era tudo rápido, e quase não havia tempo para os cem terem qualquer sensação nova que não a estupefacção que já tinham antes. Quanto tempo lhe sobrava! e quanta disposição tinha para que sobrasse mais -, e com o tempo que resgatara do seu trabalho oficinal, pôde ver pela primeira vez as irmãs, tão morosas, tão alheias às possibilidades de rentabilização do seu trabalho, fiando e medindo o linho como artesãos primitivos. Continuava a mirá-las entre incursões da lâmina, e orgulhava-se da rapidez que ia impondo, e como houvesse necessidade de tornar evidente a sua primazia, elevou o seu trono quanto ao das outras. Daquele lugar sobranceiro, via o fio sair das mãos da primeira, ser medido no colo da segunda, e passar, com um movimento rápido das suas mãos, como na descida de uma ave de rapina, para a laje onde estavam já noventa e nove fios, à espera do movimento que cinde.
Não se podia elevar um assento sem que alguém fosse olhado de cima. À avidez da terceira seguiu-se o orgulho da segunda. Puxou o linho com violência, para não ser tomada por tola. Começou a marcá-los com uma agulha presa a um arame, presa a um cilindro, como um sismógrafo, que além de marcar, também calculava, por via de fórmulas inscritas nos seus mecanismos, a extensão de cada vida. A segunda irmã olhava a tinta marcar o linho, ébria, sequiosa por mais rapidez, e, no tempo que lhe restava, ressentia a terceira irmã e condoía-se da tacanhez da primeira, alheia aos refinamentos da ambição. Ao seu desdém veio juntar-se uma impaciência partilhada. O tempo que lhes sobrava não era usado para qualquer coisa útil. Havia provas.
Em frente a elas, na parede de mármore, estava gravado um número a vermelho. Ao longo de dez mil anos, os algarismos foram sendo substituídos num ritmo lento, compassadamente, e, sem exigir atenção ou cultivo, o número aumentou sempre. Nesse tempo, quando os seis olhos se voltavam para o seu ofício, as irmãs quase não se apercebiam da progressão dos algarismos. O número era um elemento de cuidado, de higiene, mas não se distinguia, em proeminência, de qualquer outro elemento da Sala. Agora, porém, era o fulcro de quatro olhos. A terceira irmã e a segunda davam miradas rápidas à parede, e uma fermentação ruidosa borbulhava-lhes no peito. O ritmo com que o número progredia era rápido, era adequado, mas podia ser muito melhor! E se podia ser melhor, devia ser melhor. Elas queriam. Precisavam. No entanto, por mais que quisessem estimular a necessária progressão dos algarismos, estavam limitadas pela fonte. Bufavam, rugiam, e o número crescia, os algarismos sucediam-se como as pás de uma nora a rodar num rio cheio – mas nunca era suficiente, nunca era rápido que chegasse, e nunca chegaria a ser se não fizessem alguma coisa quanto a isso.
Ao orgulho da segunda seguiu-se a fraqueza da primeira. Era um pouco perfeita, um pouco imprecisa. Temia a cólera das irmãs, e mais ainda, temia a falta que lhe fariam as suas vozes cristalinas a ecoar no mármore, no dia da celebração. Desesperou metodicamente. Respondeu às exigências. Fiou linho em quantidade crescente. O pé caía-lhe sobre o pedal como uma saraivada de granizo, incessante, ruidoso, maníaco, e o fuso rodava como um pião, e o linho deslizava como a água dos rápidos, e as polpas delicadas dos dedos abriam-se em chaga com o fio que passava, deixando, no chão, à sua frente, formar-se uma mancha de sangue coalhado.
Já não havia tempo para contemplação das histórias, já não se olhava, por enternecimento, homens orgulhosos, nem homens maleáveis, nem homens definitivos, porque havia sempre mais linho, havia sempre como alimentar o algarismo. Cada segundo era usado a fiar, a delimitar, e a cortar, às centenas de fios, com um golpe seco da guilhotina. A máquina, de tão grande que ficara, teve de ser posta bem longe delas, escondida por trás de um biombo colossal onde pequenas figuras de mulheres dançavam junto a um rio. A guilhotina já não se via, porque era feia, e era ruidosa, e a nobreza antiga das três irmãs não se coadunava com as engrenagens da sua eficácia.
A sala ampliava os ruídos: o resfolegar do pedal, o tilintar das agulhas, o golpe seco da guilhotina -, e fervia, e vibrava com a magnificência daqueles engenhos. Para mascarar o martelar, para adocicar o sopro de cólera, foi providenciada música antiga, muito complexa e solene, e quanto mais a sala prosperava, mais alto a música soava, e parecia que o centro da terra era uma caixa de música em perpétuo descarrilamento.
O arminho, a quem tinham sido feitas promessas muito diferentes do que ali se passava, assustava-se, encostado à parede. Não tinha espaço no colo, não podia passar-lhes sobre os ombros, corrido de perto delas como coisa que distraía. Era um animal frágil, esvaziado da honradez da sua natureza, mas era também o terreno em que o animal era caçado, e era as balas que se disparavam para o submeter. Só não era o olho que mira, o olho que agora se voltava para o número na parede, vendo-o progredir, um algarismo depois do outro, cada vez mais largo, mais rápido, mais fugaz e embriagante. Mais dez Desaparecimentos, mais cem, mais mil -, o olhar da terceira voltava-se para o linho como a exigir que a nascente rebentasse e pudesse receber, na sua foz, uma enchente que fosse por fim satisfazer-lhe a avidez –, e o linho era fiado sempre mais rápido, sempre mais sanguíneo, mas isso não satisfazia, isso apenas fazia ver ao olho o quanto se podia melhorar o sistema. Mais rápido, irmãs, mais rápido! É possível, é preciso -, mais rápido!
No último instante, já nenhum homem era olhado de frente. Os olhos violeta estavam cada vez mais longe dos homens, cada vez menos atentos ao que acontecia lá em baixo, no abismo imenso, onde se formavam multidões. Eles acordavam, estupefactos, roçando cotovelos com cotovelos, ancas com ancas, e desapareciam, quase de imediato. Não havia, para qualquer um deles, um fôlego que pudesse significar respeito -, o único, para alguns, que receberiam depois de uma vida a serem sempre uma consequência.
Perante a ruidosa maquinaria no Centro de tudo, a maré negra permanecia. Não avançava, nem recuava. O arminho dispensou a companhia, a mulher de cristal não perdeu a sua verticalidade – via as suas leis serem quebradas, via o primeiro mandamento ser corrompido pela distância, a distância da guilhotina; a distância dos ruídos; a distância do palanque, a negar uma unção que só pode haver na renúncia ao nosso imenso egoísmo; via o pacto que a mãe sacramentou entre Ela e as filhas ser profanado pela saúde dos algarismos -, mas a Morte não se perturbava. Os mandamentos não serviam para a proteger a ela.
Nada parava a furiosa eficiência da Sala. Cada dia era a mesma jornada: a anterior nunca interrompida pela seguinte, como os pesadelos da superfície. Uma vez por ano, apesar de tudo, as irmãs paravam. No dia do segundo nascimento, levantavam-se das suas cadeiras, vestiam roupas mais delicadas, e sentavam-se à mesa. A comida era sumptuosa, o vinho era das colinas fecundas do Vesúvio, a música, inútil quando não era preciso ocultar as manifestações dos engenhos, parava. Não havia histórias para contar. Faziam-se breves comentários sobre o tamanho de cada aresta da mesa, sobre o dia seguinte e sobre talheres.
As vozes, carregadas com grânulos inflamáveis de ansiedade, já não eram cristalinas. Moviam os lábios, projectavam o ar pela laringe, e ouvia-se um matraquear rápido, como o clique-claque das engrenagens. Acolhia-se o silêncio com pressa. Terminavam a refeição cedo, por constrangimento e por eficiência. Ainda se ajoelhavam, porque sabiam que a sua posição decorria de uma longínqua herança, e que os rituais, mesmo que executados sem verdadeira compreensão, eram necessários a defender a legitimidade dos cargos. Ajoelhavam-se em frente à parede e recitavam os mandamentos. Já não eram policromáticos, como as trovas dos aedos, mas sim uma coisa mastigada sem atenção, cada palavra esvaziada de substância, coisa que se tem de tirar do caminho para seguir adiante. A Morte, cristalina, permanecia longe. Não tocava o ombro de nenhuma, rapidamente desapegada de uma fonte certa de desconsolo, que era a confiança em boas intenções. Permanecia de pé, régia, translúcida e fria, pronta a continuar a sua presença inescapável, enquanto houvesse possibilidade de vida.
Esse dia de celebração terminava quando o silêncio já não era suportável. Não era bem constrangimento, mas medo. Um medo afilado, como agulhas pousadas sobre a pele -, não chegando a atravessá-la, mas ameaçando a superfície. Havia qualquer coisa de sobre-habitado dentro do silêncio. Era como se ele fosse constituído por milhões de símbolos de pausa, dos que se vê nas pautas musicais. As três irmãs sentavam-se com solenidade nos seus tronos, cada uma a tentar tornar o seu mais distinto que o das outras.
Por fora da sala, a rodear todas as paredes, no mais fundo do fundo do chão, já não havia terra. Os corpos de quem Desaparecia, tão rapidamente acumulados, chegavam ao fundo da terra ainda intactos. Não havia tempo, nem espaço, para que operassem os justos agentes da decomposição. Deixara de ser possível a fecundação das coisas novas. Os corpos, empurrados para posições estranhas, rodeavam a Sala por fora. Ali ficavam, multidões aflitas, a chocar contras as paredes, como pedintes a rogar um pouco de atenção às executoras da Morte.
Por entre a música antiga, quase se ouvia os punhos bater contra o mármore, quase se percebia os símbolos de pausa a serem desenhados pelas mãos rígidas… Mesmo que isso não fosse possível, até porque o barulho das máquinas não permitiria ouvi-los, estava sempre presente, por trás da compulsão de cada dia, o rumor de medo que nenhuma das três conseguia ignorar. Era o rumor do pecado. Um rumor feito de milhões de silêncios que um dia viriam, tomando o tempo que lhes é devido, olhando de frente os olhos violeta, um de cada vez, pedir-lhes contas por tudo o que fizeram.
Leonel Barbosa, Fevereiro de 2024