Manifesto In-Consciente
O que eu preciso
é quem desligue a Inconsciência –
Máquina de frenética indiferença –
e se junte ao descanso
(Irreverente)
de ser gente.
Concordo, nada mais insuportavelmente pretensioso do que me citar na abertura de um texto. Em minha defesa, nenhuma citação seria tão adequada a perspectivas pessoais do que uma citação…bem, escrita exactamente à medida delas. Para além disso, impõe-se a busca de eficácia: está “cientificamente comprovado” pela obsessão mal disfarçada da “indústria livreira” (fim de efeito desdenhoso das “aspas”), de que ensaios (ou capas pirotécnicas) encimados por citações se imiscuem com maior facilidade nas nossas mentes ávidas de autoridade – e se for uma citação em verso livre então – BAM! Temos tratado aristotélico. O conhecimento que nos antecede não tem de ser, por defeito, mais ou menos respeitado que o que hoje se desenvolva, desde que cumpra os preceitos esperados da racionalidade. Em suma, cito-me, não por presunção, mas por emolduramento poético. Por manipulação intelectual. Por convicção de que adágios e pregões são mais eficazes do que bibliotecas inteiras. Adiante.
Antes Dante que Deus.
Provocatório? É deliberado. Válido? Desafio-vos a conceberem que sim.
Em jeito de andamento de abertura, colho ainda este fruto lírico, como manifesto:
a Literatura pode não salvar o mundo mas pode salvar-nos ainda. Um de cada vez. Libertando-nos. Refinando-nos. Mudando por fim a direcção desta busca angustiante por algo insondável – do objecto para o agente. Do exterior definido para o interior, definidor. Há já algum tempo que abandonámos à solidão a nossa centelha divina deixando-a estiolar, por ser um pouco cansativo cuidar dela. É como ignorar o leme porque é pesado, mas querer chegar à Índia olhando com muita determinação para o horizonte. Provavelmente nunca chegaremos a lado algum, mas pelo menos vamos entretidos com o 9gag. A consciência é mais do que conseguir calcular o troco da cerveja. Estende-se também para lá do talento para armazenar imagens a sépia de férias na Costa Vicentina, e do habitat de dois personagens do Auto da Barca do Inferno, em conflito, sempre que queremos decidir se vamos ou não levar o amigo bêbado a casa, apesar de só querermos ver um episódio de GOT em paz. A consciência é o presente mais subvalorizado desde o cavalo de Tróia. É o milagre insondável que nasce da conjugação de existir, sabê-lo, analisar que se sabe, e poder fazer com esse facto o que que quisermos. É colocar em causa a própria existência física do mundo, porque até a certeza de que cá estamos é determinada pela forma como a consciência o define. Entendemos o cosmos como podemos, entendemos a nossa posição no cosmos como podemos, entendemos a nossa posição na sociedade, na família, perante a nossa geração, como podemos. Como as histórias em que baseamos a nossa vida o definem. Não podemos, porém, achar que conhecemos a verdade. Escolhemos a verdade, que é o possível e talvez o mais útil. Tudo é a narrativa que construímos usando a capacidade limitada de cinco sentidos, e o efeito processador da consciência. Unimos os pontos sobre a folha da melhor forma que podemos, mas nunca saberemos se é essa a imagem do mundo.
Tudo é uma história.
E é dentro de nós que elas nascem – ou se perpetuam, vindas de uma outra mente. Somos despedidos do nosso emprego, duvidamos do nosso valor pessoal, submergimos em autocomiseração ou em fúria pela incompreensão do nosso talento. Mas o que é o valor pessoal? Será hoje, num mundo de empreendedorismo e sucesso económico, o mesmo que era na Idade Média, tempo de gente piedosa, de olhos postos no céu e dignidade penhorada nos confessionários? E o que determinou que era Deus ou o dinheiro a medida segundo a qual se mede o valor de alguém? E Deus e o dinheiro, de onde nasce o valor de cada um, ambos fábulas? Nada é mais poderoso que a capacidade de contar sobre o mundo a narrativa que quisermos. Nada nos separa tanto dos outros seres não humanos do que essa capacidade de ver tão para lá das coisas óbvias do mundo – a luz, a tempestade, o frio do Inverno. Somos de tal forma dominados por esse talento para o delírio, que criamos mundos ainda mais mirabolantes – mundos de conceitos financeiros, de divindades, de ideologias sem fundamento senão na nossa determinação em acreditar nelas.
Se assim o determinasse, um Homem poderia viver achando que era um deus caído, a habitar um mundo de hologramas em que o vento são os murmúrios de deuses noutras dimensões. Quem o poderia contestar, se excluíssemos a nossa obsessão pela homogeneidade das ideias, entre nós?
Em suma, a consciência foi o degrau que nos permitiu avançar um pouco mais. Foi na verdade o vaivém espacial que nos lançou no espaço sideral, capazes de ser os próprios senhores do cosmos. Não necessariamente enquanto conquistadores espaciais – mas como próprios inventores do cosmos. O infinito, os quasares, a matéria escura – existem pela forma como a mente opera sobre o que vemos. Ela é o único verdadeiro vínculo com o exterior, o filtro em frente a tudo. E a grande alegria é que o podemos mudar, se quisermos – se desviarmos os olhos do Instagram de vez em quando, claro está. Não necessariamente para lançar a anarquia e redefinir individualmente toda a realidade – até porque deixaríamos de poder colaborar em grande escala com outros Homens, ou construir o extraordinário edifício da civilização e beneficiar dele, como o fazemos.
Podemos ser senhores (ou pelo menos censores) da consciência.
Para calibrarmos as causas das nossas angústias, para nos recolocarmos perante a força das ficções, e evitar que elas nos dominem ao ponto de nos causarem um sofrimento atroz. Nunca uma ficção deveria ultrapassar o propósito de trazer maior concórdia, e menos sofrimento. Nunca uma religião se deveria sobrepor à felicidade do Homem que a criou e que a sustenta, nunca a economia deveria sobrepor-se à dignidade, nunca uma ideologia de supremacia racial deveria permitir que uma só vida fosse arruinada. As histórias que criamos devem facilitar a cooperação, a busca de sentido, encher de luz uma indefinição da existência mergulhada na bruma. A partir do momento em que o bem estar de entidades ficcionais se sobrepõe ao bem-estar do Homem (ou dos entes vivos), não estamos perante devoção. Estamos perante delírio. O défice obriga a que se passe fome – que se lixe o défice; deus não permite que dois homens durmam nos braços um do outro – deus precisa de uma calibração; um eugenista quer que só brancos possam tomar decisões – há que recordar-lhe que ele é apenas uma vítima da sua própria alienação. Não há nada exterior a nós que controle deus, que controle a economia ou a ideia de superioridade racial. Há apenas algo interior. Sabê-lo (principalmente nos momentos certos) é tomar controlo do mundo, para benefício de todos.
Começaram os homens por Mileto a entender o gérmen de divindade guardado dentro deles, e como a chama frágil da primeira fogueira pré-histórica, foram-na cultivando com esmero e brio. Papalvos. Hoje mantemos a centelha numa cama de hospício de 1950, a gotas de morfina para que não faca muito alarido. Hoje há suficiente oferta de entretenimento para que não tenhamos de ficar a sós com a imensidão inexplorada de nós por mais que uns segundos. Podemos ver memes à espera do autocarro, ouvir o Spotify enquanto escovamos os dentes, ver o feed de notícias parados no vermelho, ignorar os convidados com a exploração do Instagram ou ficar no sofá a assistir a programas em que as 24 horas de acéfalos de sunga, num condomínio privado, é propagandeada como grande experiência antropológica. Não há espaço a sentir a angústia do vazio – não porque não haja vazio, mas porque não se está a anestesiar o angustiado. Se é um estado desejável, se é de facto a solução mais confortável para combater a aparente ausência de sentido de tudo – pois seja. Mas renuncia-se ao grande poder interior que temos. É como poder ser deus e escolher ser barata, por preguiça. Como telescópio que vai ampliando, renunciamos a tentar compreender o cosmos a tentar compreender a nossa posição no cosmos. Renunciamos a perceber o nosso papel no enredo social humano, a ser um agente responsável nas decisões sobre o mundo em que habitamos.
Renunciamos a não ser um agente passivo perante o sofrimento alheio.
Somos uma sombra a conduzir condenar à atrofia os rebentos em volta, pela inércia de não querer ser sol. Estagnar-se é ser conivente com a injustiça, com a desigualdade, e deixar às mentes despertas o controlo de um mundo comum. Acordai, já cantavam os coros de Lopes Graça – acordai!
Mas de que forma pode a Literatura libertar-nos?
Não vivemos uma era de prosperidade, de paz e de relativa satisfação social (comparativamente ao triste estado do mundo nos milénios anteriores, naturalmente)? E porquê a Literatura e não as manhãs da TVI, ou o ténis, ou os miradouros a meio da tarde? Porque a Literatura é, por enquanto, o mais próximo que existe de se assistir a uma consciência. A de outros, pelo menos. Mas ainda assim, até a nossa pode reavaliar-se pela literatura de si mesma. Escrever pode ser tão revolucionário como ler. Mas será assunto para outras viagens. A Literatura usa a linguagem para mimetizar a forma como alguém (personagem, autor) apreende a sua experiência de existir. As deambulações interiores, o entendimento do mundo físico, os preconceitos, as imagens e como as entende – tudo pode ser traduzido alquimicamente para a matéria concreta da Literatura. O cinema, o teatro, a pintura – também o poderão fazer, é um facto (e assista-se cinema, a teatro, contemple-se pintura, que não há aqui qualquer tentativa de tornar mais válido um meio de cultura, quanto a outro).
É, porém, o trabalho da linguagem que torna a experiência literária tão íntima, tão próxima desse processo insondável que é a consciência.
Se a consciência é a artista definidora do mundo, da vida, da existência – a linguagem é, em grande parte, a tinta, os pincéis, a tela e as próprias mãos. A consciência executa-se internamente através da palavra, usando o seu conteúdo para poder associar conceitos, criar universos. A palavra é o tijolo, e a língua é o edifício que se vai erguendo, da forma como se conceber. A Literatura apropria-se desse código da alma, a linguagem e, como uma carta náutica, vai conduzindo uma outra consciência, que reconhece esse código, esse conteúdo interno da palavra, por lugares que ela não conhecia. Por possibilidades dentro de si mesma, que ela não conhecia. E como aprendiz e artista, também ela passa a saber executar novos traços, novos quadros, novos mundos para si mesma.
Pode parecer tudo muito lírico e pouco prático, mas recorramos ao saurópode para entender como esta revolução interior aconteceu, já – e poderá voltar a acontecer, se necessário.
Desde a sua invenção, na Suméria do terceiro milénio antes de Cristo, que a Literatura se focou essencialmente na narração de eventos exteriores. Na Antiguidade clássica cantavam-se as guerras épicas, expunham-se os caprichos dos deuses e a sua manipulação do frágil elemento humano; na Idade Média recitava-se as aventuras de heróis piedosos, de cavaleiros em busca de honra num mundo de misticismo e violência. O importante eram esses enredos, que exibiam os movimentos da sociedade e dos seus valores, que revelam as conquistas de povos e os méritos de religiões. Os personagens, os Homens, eram, a maior parte das vezes, peões sem grande densidade interior, e que se mantinham imutáveis ao longo de toda a narrativa. Eram coerentes com a ideia que deles se tinha, eram eficazes na execução do seu papel na trama, mas nada mais. Mas de repente, tudo mudou. Shakespeare revelou, depois de milénios, algo que ninguém suspeitava. O Homem tinha um mundo interior. E esse mundo interior pode ser mudado. Os personagens em Shakespeare, perdem menos tempo a tentar brandir espadas e punhais do que a analisarem-se a si próprios. Hamlet não executa apenas o seu papel como príncipe de Elsinor – Hamlet analisa qual a sua relevância, quais os seus impulsos e, surpreendentemente, consegue mudar, graças a essa análise. Iago, Macbeth, Otelo, António – todos suspendem a corrida da narrativa para ponderarem o efeito que os acontecimentos têm em si, as reacções que encetaram, o que elas significam, e se pretendem continuar a persegui-las, ou mudar o rumo do seu mundo interior- enquanto que as suas concepções do Outro e do mundo vão mudando. Shakespeare deu ao personagem o dom de se explorar, e dominar o mundo. A leitura de Shakespeare deu ao homem moderno a noção de que também ele o pode fazer. De que há, dentro de nós, e por nós, um universo tão ou mais vasto que o exterior, definido ele próprio pela consciência. Ler revela uma outra mente, e os caminhos que ela toma, na sua compreensão do mundo, e na sua mudança.
Ler é muito mais do que entretenimento – e por vezes não é entretenimento de todo.
Chega até a ser dor. Mas o resultado desse esforço, dessa demanda interior não poderia ser mais grandioso. Cuidar o corpo é fundamental para sustentar em equilíbrio as imensas possibilidades de uma vida. Cuidar a mente é libertarmo-nos. É tornamo-nos senhores de nós e do mundo. É permitir conduzir o próprio constructo artificial da sociedade no sentido de procurarmos o bem estar de todos, e mitigarmos o sofrimento alheio. A Literatura, a escrita, a exploração do mundo interior, da consciência, são a nova viagem de descoberta. E desta vez, deveríamos todos partir.
Não se trata de jargões esoteristas do género “deseja muito algo, que irá acontecer”, como se o cosmos fosse uma versão mais cintilante do pai Natal, todo ele votado aos dramas pessoais humanos. Trata-se de reconhecer que a vida do Homem se executa através da consciência, e que a consciência é mestre de si própria. Fomos definindo, de forma mais ou menos atabalhoada, as ficções que nos trouxeram até cá. Podemos definir as que quisermos, desde que sejamos pragmáticos nos objectivos. Concórdia, fraternidade, exploração, irmandade com todas as coisas. Sagre-se a consciência colectiva a e individual!
Mas, consciente do grau etéreo em que estou a tecer a apologia da Literatura, desçamos dos níveis supra-humanos para um plano de acção que seja mais pragmático. O exercício da consciência é a única forma de nos defenderemos contra o bombardeamento constante de informação, no mundo contemporâneo. Provenha ela quase ilesa dos responsáveis políticos, de intelectuais das mais diversas áreas, dos influenciadores, ou seja fruto de uma filtragem tendenciosa por parte dos media, se não no munirmos de certas habilidades, deixamos ser agentes da nossa própria vida. Somos avassalados por notícias sensacionalistas, perspectivas necessariamente parciais, condutores de conduta com um objectivo subliminar que parece sempre latente. Exercitar a crítica, a aplicação de uma higiene intelectual cuidada, é a única forma de mantermos a individualidade e de continuarmos conscientemente o projecto social, fraterno de existência conjunta (com os outros Homens, com o mundo, com o cosmos e com o que ele contém). Não podemos viver continuamente colocando em causa as ficções que conduzem a nossa vida – ou passamos a habitar um cinismo que nos congela. Mas neste nível operacional do quotidiano, imersos nessas ficções, podemos exercer continuamente essa postura inquisidora. Como se se tratasse de um talento mais mundano da consciência, apliquemos uma metódica e trabalhada forma de análise de tudo o que recebemos, usemos das ferramentas que uma introspecção contínua garante: e para além de sermos agentes do mundo, seremos agentes conscientes. Ser partidário de algo é natural e talvez desejável – aumenta o nosso sentido de pertença, envolve-nos nos projectos comuns. Mas há que nos munirmos contra a visceralidade de desejarmos que a informação exterior venha validar os nossos preconceitos.
“Não sou partidário deste governo”.
“Há uma notícia que coloca as políticas deste governo sob uma luz pouco lisonjeira”.
“A luz está ótima, não se mexa.”
O meu desejo de que este governo não tenha sucesso não deve levar-me a baixar as armas críticas perante os dados apresentados. Acima de tudo porque renunciarmos ao nosso poder de contestar o que nos é dado, o que é renunciar ao nosso direito de nos conduzirmos. Cedermos a manipulações sensacionalistas é abdicarmos da nossa autodeterminação por preguiça intelectual. Por cedência ao primarismo dos desejos de validação de sentimentos espontâneos. Claro que não é necessário analisar a vida como se se tratasse de uma equação de 7 linhas numa aula de álgebra – há e deve haver espaço ao sentimento (e até o sentimento é uma forma não verbal de exercício do intelecto e da identidade, portanto sinta-se!!). Perante a ameaça de manipulação exterior é que convém recorrer aos instrumentos adequados. Luvas para lidar com feridas, não vá uma delas estar infectada.
A Literatura é, em potencial, irmandade.
Permite aproximarmo-nos de uma outra mente até ao nível da sobreposição. Oferece-nos uma outra forma de entender o cosmos, a vida. Literatura é empatia, a mais subtil e poderosa forma de empatia: a conversão temporária no outro. Nada há de mais útil para se poder caminhar a Terra sem espezinhar o que vemos, em quem tocamos. Um caminho de concórdia e de tolerância feito de versos, de sonetos, de epopeias e de romances. Um caminho que talvez tenhamos negligenciado tempo demais.
Julgo que se tornou claro que Dante pode libertar-nos tanto ou mais eficazmente que Deus. Cícero tanto quanto Cristo, a Hermione tanto quanto Santa Rita de Cássia. Para bem ou para mal, investimos naquilo que nos traz alguma forma de lucro, é esse o mote da Modernidade. Talvez ser livres seja lucro suficiente. Mas para quem não se importe de beneficiar de uma vantagem colateral, deixo uma confidência. Mesmo inútil, a grande beleza da Literatura está no interstício de se existir. É a transcendência. A transmutação no elemento de puro abandono musical que só a Arte permite. A sensação oculta e durável da plenitude.
Ler, reconhecer, transcender. Não seria menos verdade se não fosse em verso. Assim vos escrevo, dos caminhos de mim e por graça desse Senhor interior que tudo define, e que tudo procura conhecer:
O que eu preciso é quem desligue
A Inconsciência – Máquina de frenética indiferença
E se junte ao descanso
Irreverente
De ser gente.
Como diria um cravo vermelho,
– entra, a teu próprio risco…