Slam

Da Amizade e do Céu Nocturno

28 Julho, 2019

 

 

A todos os irmãos constelados em mim.

 

Nada, nunca, verdadeiramente, se toca. Entregamos o corpo desabrochado num abraço, aproximamos uma mão da curva de um flanco deitado – mas o nosso corpo jamais toca o outro, a nossa mão jamais toca o que procura. Habitamos o corpo e habitamos também as leis que o compõem – rigidez que limita a expressão dos nossos membros, da nossa pele, das suas células e, na infinidade, a dos seus átomos. É aí, na individualidade orgulhosa do átomo, que impera a lei da distância – um desdém electroestático que o impede de tocar um seu igual. E nós, aprisionados na matéria que nos compõe, não poderemos jamais chegar ao Outro, em absoluto – apenas pressenti-lo. Uma partícula nunca toca outra, uma mão nunca toca outra. Não, não é niilismo, é a Física da solidão.

 

Há na ideia de unidade uma rigidez de axioma e uma elegância de concepção que influi na matriz de tudo.

 

Entendemos o universo pela capacidade de nomear tudo o que o compõe – a árvore na floresta, a folha na árvore, o estoma na folha, a célula no estoma, o núcleo na célula. Numa viagem de microscopização, vamos convertendo o mundo exterior numa hierarquia interminável de identidades – e logo, de indivíduos. E o corolário incontornável desse axioma é que existe sempre distância entre as coisas.

 

Em todos os domínios estamos aprisionados: entre átomos e conceitos, nada se toca – nem na matéria nem na ideia, nem nos dedos nem nas folhas. Tudo é apenas aproximação.

 

Nós, Homens, no hábito de sermos a única ficção importante do cosmos, reconhecemos estes comportamentos de isolamento das partículas na nossa própria forma de electroestática – a nossa vida interior. A definição de um átomo torna-o indivisível da mesma forma que a definição do eu me torna necessariamente solitário. Cada ser, cada consciência é separada das restantes por um abismo tão largo como os que separaram os braços das galáxias.

 

Nascemos na mais completa solidão. Crescemos, e vivemos na mais completa solidão. Habitamos numa casa de mãos que se amparam, seguimos em escolas, ruas e empregos de olhos que se entreolham mas, no espaço imenso no interior de cada um, habitamos a consciência de que somos responsabilidade de nós próprios. Vivemos na assustadora liberdade de uma independência que nos define. Somos humanos, e por dentro somos um. Um. Até ao dia em que tudo muda. Até ao dia em que, na imensidão de outros “uns”, de outros “eus” a habitar solitários um interior de expectativas e medo, surge alguém. Surge um outro que, numa secreta diplomacia de vontades, muda a sentença de solidão, para sempre. E então, nesse instante poderoso de alforria, deixamos de habitar a incerteza, deixamos de habitar o medo, deixamos de ser náufragos. Passamos a ser de alguém. Com alguém. Não há momento mais decisivo, não há força mais poderosa do que esta, a de recusar uma vida na qual somos o único responsável por uma felicidade que tanto teima em parecer inalcançável. É isso que celebro hoje. Essa decisão, metade consciente, metade mágica e misteriosa, de renunciar a uma vida de eus, de uns, de passos sozinhos. O advento miraculoso da Amizade.

 

A amizade tem tudo para ser inútil. A nossa longa História evolutiva não costuma ser muito generosas com características que não facilitem a sobrevivência e a procriação. Naturalmente que a vida em comunidade foi, desde sempre, uma arma indispensável: a camaradagem militar defende-nos, os vizinhos vigiam a nossa normalidade, os copos vácuos ocupam o silêncio e aumentam a probabilidade de termos sucesso enquanto grupo. Mas não é a essa amizade que me refiro. Esses são laços pálidos, feitos de convívio circunstancial e utilitarista. Esses são códigos de comunidade e nós, que o compomos, somos o elenco indispensável do drama social.

 

A amizade que celebro, esse raro prodígio, é outra coisa, por completo. É um milagre de identificação. É um fenómeno que chega a um lugar muito mais primordial do que a da simples ocupação do tempo morto. Um fenómenos raro que chega à mais distante forma de nós, à reclusa e íntima unidade que somos – à nossa Absoluta solidão de partícula.

 

Amar – daquele amor romântico, passional – é igualmente grandioso, mas é algo diferente. Aí sim, ameaça-se a colisão. Amamos, submergimos no outro, e nesse abandono há quase um desejo de morte, de anulação do eu e conversão numa forma de unidade-a-dois. O Amor é poderoso, mas é como as erupções do Vesúvio – cheio de beleza e de perigo. A única forma de se vencer a força que impede dois átomos de se tocarem é uma fusão – um espectáculo de caos e energia, que é, no limite, aniquilação.

 

Um amigo é algo diferente. A felicidade de se de ter um amigo é das maiores subversões à aparente lei natural que rege tudo. Não porque nos permita tocar o outro – pelo contrário. Permite olhá-lo na sua completa independência. Com atenção. Com pleno reconhecimento dos seus contornos, com pleno respeito pelo seu conteúdo.

 

Um amigo, um irmão, é um verdadeiro – senão o derradeiro – resgate ao destino de solidão que se inscreve em nós. Não é apenas uma feliz complementaridade de intelectos ou de princípios – repito porque é essência: é um prodígio de atenção. A amizade real brota dessa dádiva de se estar atento. Desse raio de luz que rompe, tonitruante, pelo cimento que nos fecha nas masmorras do nosso isolamento interior. A verdadeira atenção a mim é a validação final da minha existência. Da minha importância. De que, aparte a ginástica social que todos dominamos, alguém abdicou do seu desespero solitário, para me ver a mim. A mim. Alguém anulou o suficiente o estertor da sua própria batalha de sobrevivência para que o longínquo murmúrio interior onde estou eu, fosse ouvido.

 

No reconhecimento desse lugar em que só eu existo, encontrei um desalento como nenhum outro. Uma solidão mais profunda que qualquer outra, uma solidão que não cessa, porque é a própria matriz do que sou. Mas conhecer as masmorras da minha solidão trouxe-me uma alegria de igual medida, senão maior. A de ver de onde surge, na escuridão do isolamento, as delicadas revoltas de luz. Sou afortunado o suficiente para que tenha luz que baste. Na escuridão da minha cela, cela com vista para o espectáculo distante do mundo, foram chegando, pelos meus interstícios, amigos verdadeiros. Vivo-os compreendendo essa glória do que eles significam. Sabendo os limites da nossa condição, a nossa sentença de exilados. Votou-me a vida a uma solidão eterna. Eles são, sem a colisão aniquiladora do amor romântico, o resgate.

 

Não é sequer necessário que os veja com frequência, não é necessário que estejamos juntos em todos os atos deste drama do mundo quotidiano. Não preciso de gastar com eles a energia maciça dedicada às palavras educadas, às palavras vazias, jubilosas, com que brindo o mundo de náufragos que se olha como se se conhecesse. Não importa que não estejam cá em cada instante. O que importa é que saiba que há, de vez em quando, alforria. Que a sentença foi já levantada, e que apenas aguardo liberdade. E quando, por fim, os tenho nos braços, esse canhão de luz lança a sua fúria por todas as camadas de cansaço e encenação – e nas masmorras as paredes passam a ser luz, e entre as individualidades que quase se tocam, há a mais perfeita festa que a languidez da vida poderia desejar. Quando chegam, não é necessário ocupar o silêncio com os subterfúgios que aprendemos para que sobrevivamos a nós mesmos, para que resistamos à angústia de estar calados. Como se, num golpe de sorte, se harmonizassem duas melodias, a música que surge é um improviso de impossível beleza. E ouvi-lo aniquila qualquer silêncio. Quando eles cá estão, a minha partícula encontra os seus irmãos de Primórdio, e no perfeito entendimento de almas, na atenção absoluta ao outro, não há jamais espaço à desistência. Ser é possível, e é fácil, apenas nessa festa de luz do meu amigo.

 

Fechando a metáfora, amigos não são átomos que se fundem. Somos, e reconhecemos, a distância. É nela que nasce a grandiosa alegria da irmandade. Como numa constelação, estamos unidos pelo mito conjunto, pela história que, juntos, compomos – não pelas circunstâncias celestes. Na atenção necessária a ver-se para lá de pontos distantes no céu, somos uma mitologia privada. Mesmo na lonjura entre os nossos abismos, somos as histórias que compõe a nossa identidade.

 

Sim, somos um.

Ninguém jamais nos toca. Mas, se estivermos suficientemente atentos, um amigo chega perto o suficiente.

 

A todos os irmãos constelados em mim, permaneçam. Em cada festa de luz nas masmorras, eu permanecerei.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *