
Sem que o corpo se aperceba que se dissolve – na curva da pétala, na maciez da nuca, na lâmina de uma navalha – entregamos ao ar um quinhão de nós.
Antes que toquemos as coisas, antes que sejam vistas, elas chegam até nós em pequenas emanações. Mesmo quando são ouvidas, não são elas que se expõe, apenas se representam: é a perturbação do mundo exterior que chega até nós, como a onda gerada por uma pedra que cai no lago, que não tem nada da pedra senão o seu efeito sobre a exterioridade. O aroma, porém, age com uma eloquência primitiva, impõe uma forma radical de promiscuidade. Perversamente, é a possessão de outros corpos pela carne eterizada de quem o emana; levianamente, é a invasão dos interstícios de quem o acolhe. O aroma é assim, uma minúscula amputação.
Dissemina-se como chaves voláteis a agir em fechaduras escondidas em nós. Abrem caixas (mais terríveis que a farsa grega) de onde se libertam fúrias, compulsões, anseios cuja origem, no instante em que se abatem, julgamos ser um capricho de aleatoriedade, um augúrio divino, uma qualquer intuição, à falta de palavra mais precisa para o que se ignora no eu.
A intuição é apenas uma fuga ao rigor. De facto, reagimos a uma ordem que se impõe na obscuridade do nosso entendimento, vamos sendo conduzidos como os carreiros de ratos do flautista de Hamelin. É pelo fluxo desse silêncio que uma lebre se recusa a erva venenosa, que um bebé se acalma perante o anúncio de que a mãe está perto e a aponta na bruma de tudo o resto que não ela. Pelo odor antecipamos a beleza. Na escuridão, chega-nos a presença vaporosa, a forma incorpórea de uma flor. Podemos nunca chegar a vê-la, mas compreendemos com igual rigor a aresta da pétala, a suavidade de veludo, na sinédoque que decorre nas oficinas do olfacto.
Os dedos do mundo invadem-nos com a sofisticação de uma brisa. Primeiro tacteiam, depois submergem na carne, tornando-se indistinguíveis da nossa própria matéria. Por fim, próximos do âmago, executam as suas pequenas vilezas. Os aromas contam-nos coisas ao ouvido, reconstroem com agudeza as coisas que amamos (a água fria dos verões da Póvoa, a língua-da-sogra, as barracas às riscas espetadas na areia – absolutamente nítidos, mal se cheira de longe o castanho do sargaço, pela janela aberta do carro), as que tentamos, inocentes, manter ocultas (preso à camisola, o cheiro insalubre de um desgosto, no fundo de um armário). Mais que um prazer ou um desagrado, o aroma é uma forma de garantir a proximidade concreta ao que está fora de nós (se é que o interior existe, sequer). O mundo é mais do que o cenário onde exercemos uma vontade incorruptível, sem interferências. O lírio é quase indistinguível de mim e com as suas delicadas falanges vai-me conduzindo no caminho, como à ovelha tresmalhada que não sabe assim tanto de si. Talvez por isso um Homem que não cheire se deprima. Talvez porque, de alguma forma, perde a companhia suspensa de quase tudo.
O perfume poderá ser, por esse motivo, uma das formas de arte mais radical. Com ou sem consciência do fenómeno, agiu-se deliberadamente sobre algo que é indeliberado, por definição. Colocou-se os dedos do mundo num frasco. E por graça de um poder antiquíssimo, gerou-se prazer. Quem sabe até algo mais, por outros caminhos imprevistos.
Na caminhada evolutiva que conduziu ao Homem, o cérebro foi-se somando. Como na adaptação de um operário a um novo posto, novas funções implicaram que se acolhessem novas ferramentas e que se dispensassem velhos hábitos. Na obscura passagem do sapo ao rato, ao Homem, algumas áreas do cérebro aumentaram de tamanho, especializaram-se, roubando espaço ou funções às antigas oficinas. Hoje possuímos todos (presumivelmente) o modelo mais sofisticado e especializado da tecnologia biológica, no interior de um crânio quase hermético. Mas ainda assim, algo do caminho persistiu. Como um salão remodelado, mantemos ainda em nós a lonjura de um arquicórtex e de um paleocórtex (denunciando a sua antiguidade de salão na própria nomeação). A resposta aos odores que se gera dentro de nós decorre nesses locais. Na verdade o olfacto é o único sentido que segue directamente para esses antigos espaços, sem passar num intermediário. O olfacto revela a nossa intimidade esquecida com outros animais, é a nossa linguagem comum com antepassados quotidianos, é uma marca de nascença, o nosso vestígio de irmandade com o não-humano. Num lapso melodramático, é talvez a jóia de família deixada junto a nós quando partimos para outro momento evolutivo, trazendo sempre a memória de uma unidade primordial.
Na rapsódia da nossa vassalagem ao exterior, há um aparte de particular interesse. Sem que ninguém o leia ou o descodifique, contém os diálogos insones da nossa devoção a outro corpo – diálogos silenciosos e totalmente indiferentes à nossa eloquência. Existe em alguns mamíferos um órgão vomeronasal que se pode entender como a alfândega da intimidade. Súbitos ou persistentes, chegam-lhe voláteis cargueiros de essências vindas de um outro corpo. Depois de reconhecidas, descodificadas e rotuladas, a redondeza das feromonas seguem desse órgão para o âmago do animal. Aí, sem que a individualidade possa apresentar muita resistência, os emissários de além-corpo irão desencadear e modular, como num golpe palaciano, os comportamentos primordiais do animal: a atracção sexual, a maturidade reprodutiva, o domínio do grupo. Quase tudo de determinante no relacionamento com o outro se faz por este código, por uma linguagem de odores. Não passa pelo plano claro da linguagem, mas move tudo com a eficácia de uma burocracia imperial.
No Homem esse órgão não tem qualquer função. O progresso eliminou um silêncio esperto. Cada vez mais, porém, se suspeita que essa redondeza de “feromonas” possam também actuar em nós, possa também dispensar-nos de um excesso de jurisdição sobre a nossa vida.
Apesar de aquilo que herdámos não ser mais que um rudimento inútil de passado, quem sabe não persiste ainda em nós um pouco desse cortejo molecular. Quem sabe até o amor não é a nascente que brota dentro, quando a chave certa chega aonde ele aguarda; quando, enviado no ar pela alquimia auto-mutiladora de um aroma, alguém se nos oferece.
Com ou sem hipóteses menos poéticas, há mais no dorso de um aroma que apenas a satisfação de um sorriso ou o esgar de uma náusea. Na literalidade da sua lascívia o aroma é um oceano – infiltra-se, submerge-nos, e enche-nos a carne com a essência do mundo. Sendo-nos ou não permitido, é reconfortante pensar que se pode ainda inspirar as ordens. Que se pode, entre tanta ânsia, descansar a eloquência ao fluxo de um aroma.